Desigualdade torna o mundo mais vulnerável a pandemias, alerta relatório da ONU
O relatório foi elaborado pelo Conselho Global sobre Desigualdade, HIV/Aids e Pandemias, ligado à ONU

Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil
CLÁUDIA COLLUCCI - Quanto mais desigual é uma sociedade, mais vulnerável ela se torna a pandemias, revela um novo relatório global lançado nesta segunda (3) por uma comissão especial da ONU (Organizações das Nações Unidas), às vesperas das reuniões do G20, que ocorrerá neste mês em Joanesburgo (África do Sul).
O alerta chega em um momento em que o mundo ainda contabiliza as perdas da Covid e observa novos surtos de gripe aviária e Mpox, com o surgimento de variantes e cepas mais resistentes.
O relatório foi elaborado pelo Conselho Global sobre Desigualdade, HIV/Aids e Pandemias, ligado à ONU, e copresidido pelo Nobel de Economia Joseph Stiglitz, pela ex-primeira-dama da Namíbia Monica Geingos e pelo epidemiologista Michael Marmot. A ex-ministra da Saúde Nísia Trindade integra o conselho.
Para economistas, epidemiologistas e líderes mundiais que participaram da elaboração do documento, as iniquidades não são apenas um problema social, mas sim um elo oculto que torna as crises sanitárias mais longas, letais e custosas.
"A desigualdade não é inevitável. É uma escolha política, uma escolha perigosa, que ameaça a saúde de todos", afirmou Geingos, no lançamento do documento. "Quem se preocupa com o impacto das pandemias precisa se preocupar com a desigualdade. Os líderes podem quebrar esse ciclo aplicando as soluções políticas apresentadas neste relatório."
As desigualdades internacionais, alerta o documento, globalizam a vulnerabilidade. Quando alguns países têm condições de responder a um surto e outros não, o risco se torna coletivo.
A falta de acesso equitativo a vacinas e medicamentos durante a pandemia de Covid ilustrou o problema: milhões de infecções e mortes evitáveis e o surgimento de novas variantes foram consequência direta da exclusão tecnológica.
As vacinas foram desenvolvidas em grande parte graças a financiamento público, mas suas patentes terminaram entregues a corporações transnacionais. Essas, por sua vez, cobraram pelos produtos preços impagáveis pela maioria dos países pobres.
Segundo o estudo, fatores como moradia precária, informalidade no trabalho, falta de educação e ausência de proteção social criam "zonas de vulnerabilidade" onde vírus e bactérias se espalham com mais facilidade.
"Reduzir desigualdades, com moradia digna, trabalho justo, educação de qualidade e proteção social é atacar o risco de pandemias em sua raiz", disse Michael Marmot, diretor do Instituto de Equidade em Saúde da University College London. "Combater a desigualdade não é um luxo: é essencial para a preparação e a resposta a crises sanitárias."
O relatório aponta ainda que a Covid empurrou 165 milhões de pessoas para a pobreza, enquanto os mais ricos multiplicaram suas fortunas. Os países em desenvolvimento acumularam US$ 3 trilhões em dívidas.
As dívidas acumuladas e as políticas de austeridade minam a capacidade de investimento em saúde e tornam o mundo menos preparado para a próxima crise.
"As pandemias não são apenas crises de saúde; são também crises econômicas que podem aprofundar a desigualdade se forem mal geridas", disse Stiglitz. "Políticas de austeridade e juros altos sufocam investimentos em saúde, educação e proteção social. Romper esse ciclo exige garantir que todos os países tenham espaço fiscal para investir em segurança sanitária."
Para a diretora-executiva do Unaids, Winnie Byanyima, o relatório deixa claro por que é urgente enfrentar as desigualdades que alimentam as pandemias e mostra como fazê-lo. "Reduzir desigualdades dentro e entre os países significa garantir uma vida melhor, mais justa e mais segura para todos."
O documento chama a atenção para o fato de que, apesar do avanço científico, as pandemias de HIV/Aids, tuberculose e Mpox seguem ativas, sobretudo entre populações marginalizadas.
A queda recente nas doações internacionais, especialmente por parte do governo de Donald Trump, ameaça comprometer conquistas históricas, como o número global de infecções por HIV que, em 2024, caiu ao patamar mais baixo em três décadas.
"Precisamos agir juntos contra as desigualdades, que tornam as pandemias mais prováveis, letais e custosas", disse Nísia Trindade. "Garantir que medicamentos e vacinas possam ser produzidos regionalmente é vital para a saúde global."
PLANO DE AÇÃO 
O relatório apresenta um plano de ação em quatro frentes para "quebrar o ciclo desigualdade-pandemia":
Remover barreiras financeiras -renegociar dívidas e criar novas linhas de financiamento automático, como emissões de Direitos Especiais de Saque do FMI, garantindo espaço fiscal para investimentos em saúde e proteção social.
Investir em determinantes sociais -fortalecer programas de moradia, nutrição, educação e trabalho, além de sistemas universais de proteção social capazes de reduzir vulnerabilidades antes das crises.
Fortalecer a produção local e regional -suspender regras de propriedade intelectual durante pandemias e tratar tecnologias médicas como bens públicos globais, incentivando o compartilhamento de inovações e a produção descentralizada.
Construir confiança e governança comunitária - direcionar parte dos recursos para organizações de base e criar estruturas multissetoriais permanentes de resposta a emergências sanitárias.
O objetivo é redefinir o conceito de segurança sanitária: não apenas a capacidade de conter um vírus, mas a de construir sociedades mais justas e resilientes.
A mensagem central do documento é que o combate às pandemias começa muito antes do primeiro caso registrado. Envolve corrigir desigualdades econômicas, sociais e de gênero que moldam quem adoece, quem morre e quem se recupera.
Para Stiglitz, Geingos e Marmot, essa é uma mudança de paradigma: a segurança sanitária não pode ser construída sobre sociedades desiguais. O relatório pede que o G20 e as instituições financeiras internacionais adotem políticas que integrem saúde, economia e justiça social.


