Na Europa da Idade Média, livros foram queimados porque a Igreja tinha medo que o homem descobrisse mais sobre si mesmo. Séculos depois, no 20, o Nazismo na Alemanha sobrepôs a cultura local perante as de outras partes do mundo para legitimar suposta - é equivocada - hegemonia racial. Nos anos 70, a Ditadura Militar no Brasil proibiu a circulação de muitas músicas, revistas e literaturas, apontadas como subversivas, que serviriam para que o indivíduo tomasse conhecimento das ações pavorosas do regime.
Alguns movimentos em pleno 2019 facilmente remetem a estes momentos de obscurantismo e miséria cultural. Flertes do projeto Escola sem Partido com o autoritarismo, que se impõe como o arauto da moralidade e tenta colocar à sociedade o que é certo e o que é perverso na literatura escolar, por exemplo, são irresponsáveis rédeas para um perigoso controle social.
Se olharmos para quase uma década atrás, é possível alçar casos que pavimentaram a tentativa de mirar a educação com supostos “bons modos” e uma moral retrógrada.
Em 2010, um grupo de professores e da sociedade civil pediu que um livro seja retirado das mãos dos estudantes de escolas estaduais. Tudo por causa do conto “Obscenidades para uma dona de casa”, do escritor Ignácio de Loyola Brandão, que está no livro “Cem melhores contos brasileiros do século”, distribuído no Ensino Médio.
Como sugere o título, palavras consideradas de baixo calão e que remetem ao ainda tempestuoso universo do sexo chamaram a atenção dos pais de algumas crianças, que ao invés de discutir com elas a respeito do que se trata o conto, agiram como se tomados pela quimera daqueles citados tempos históricos e exigiram a censura do texto.
O conto é de fato polemico, mas promover discussões e causar espanto são alguns dos papeis da literatura. O texto aborda como o cotidiano marcado de uma dona de casa muda quando começa a receber cartas eróticas anônimas. O fato desperta a sensualidade na mulher, algo tão inerente ao ser humano. Na trama, a personagem, constantemente, se questiona enquanto lê as cartas. Brandão deixa claro que existe o conflito entre o certo e o errado no que ela faz.
Invés de censura, por que não reflexão? Uma alternativa é ler o conto junto aos filhos e discutir os termos elencados como obscenos. Ações educacionais devem ser fomentadas tanto em salas de aula como nos lares. É um despropósito criticar deste jeito um material escrito. Isso é censura e toda censura é nefasta, fascista.
A função do conto, que o próprio autor caracteriza como “erótico, mas poético” e já foi tema em vestibular, virou monólogo teatral e traduzido para dez línguas.
Sexo é assunto corriqueiro em rodas de conversa entre amigos, e todos os referidos termos usados por Brandão fazem parte do vocabulário dos adolescentes. É um moralismo enorme e uma visão equivocada da literatura. Existe a ideia equivocada de que a literatura só é boa se apazigua e nos deixa de bem com a vida.
Além disso, é preciso contextualizar o conto no livro, e aí tudo fica ainda mais inteligível e consensual. O conto está na seção das produções dos anos 80, cuja temática estava focada, principalmente, na mulher e na sexualidade, que tem a ver com a abertura cultural do Brasil.
E, assim como o preconceito racial e a intolerância religiosa são erros na evolução da humanidade, censurar a literatura que propõe reflexões sobre o que é viver e como lidar com os “anjos e demônios” é retroceder.
É como um tabu que envelheceu e que não escandaliza os adolescentes. No entanto, a ignorância é atemporal e injustiças com um ilustre escritor como Brandão – e também com a inteligência –, infelizmente, às vezes acontecem.