Antropólogos e sociólogos que se debruçam sobre os processos religiosos no Brasil têm registrado, já há algum tempo, uma inflexão em certos segmentos evangélicos: o eixo antes centrado na teologia da prosperidade parece estar se deslocando para uma teologia do poder. Trata-se de uma movimentação estratégica, com a formação de bancadas políticas nos âmbitos municipal, estadual e federal, cada vez mais articuladas e influentes.
O que antes era visto com certo constrangimento — a associação direta entre púlpito e palanque — tornou-se prática comum. Candidatos são abertamente apresentados durante cultos e “ungidos” por líderes religiosos com projeção midiática, sem qualquer disfarce ou pudor institucional.
Nesta semana, uma nova frente desse avanço se materializou em Minas Gerais: escolas públicas e privadas de Belo Horizonte estão autorizadas a utilizar a Bíblia como “material complementar” no processo pedagógico. O documento oficial afirma que a participação dos alunos será opcional. Ainda assim, a medida levanta sérias preocupações.
O professor Rodrigo Toniol, da UFRJ e membro da Academia Brasileira de Ciências, alerta: a inclusão da Bíblia sob o pretexto de valorização cultural pode camuflar uma ofensiva religiosa. Não se trata, segundo ele — e concordo —, de um projeto pedagógico, mas de um instrumento político com fins doutrinários. É evidente que estamos diante de um processo de consolidação de um projeto de poder de base religiosa. Um projeto que, embora legitimado pelas urnas — o que, em uma democracia, é inquestionável —, parece pouco comprometido com um plano de país que contemple a diversidade, a pluralidade de ideias e de fé.
Para dar aparência de neutralidade, os defensores da medida insistem que não haverá proselitismo e que o uso da Bíblia será estritamente histórico. Mas como garantir essa neutralidade em ambientes escolares onde professores e gestores podem, conscientemente ou não, carregar convicções religiosas pessoais? Já temos a disciplina de História, estruturada segundo princípios científicos. Por que inserir um material religioso específico — e só ele — como “complemento”?
O Brasil é constitucionalmente um Estado laico. No entanto, a laicidade, aqui, é frequentemente desrespeitada de forma simbólica e concreta. Basta olhar os plenários dos tribunais brasileiros, todos adornados com crucifixos — em um país multirreligioso e com crescente número de pessoas não religiosas.
Sou cristão, e essa é uma dimensão importante da minha vida pessoal. Mas entendo que, em uma república democrática, os deveres cívicos e os direitos coletivos devem estar acima das crenças individuais. A religião deve permanecer como direito — e não como regra —, como espaço de fé, e não de dominação institucional.
Não se trata de ser contra a Bíblia, tampouco contra a fé. Trata-se de defender a democracia, o pluralismo e a educação pública como espaços livres de doutrinação religiosa — qualquer que seja ela.