Adriano Azevedo

Sincretismo: um método de sobrevivência da fé, apesar de não ser mais necessário
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A prática desumana da escravidão fez com que os negros desenvolvessem técnicas de sobrevivência, sobretudo, do não apagamento de sua cultura, modos e costumes. Segundo o especialista em assuntos afro-brasileiros, o escritor Edison Carneiro 1912-1972, em seu livro “Candomblés da Bahia” – a prática desta fusão surgiu como subterfúgio para escapar da repressão dos “seus senhores”. Este etnocídio perdurou durante muitos anos, onde até meados do século XX o Candomblé ainda era visto como seita e prática fetichista, e que violentamente era perseguido pela polícia. A capoeira, os afoxés, o samba e as mais diversas práticas oriundas de África sofriam essas represálias. Mas as inúmeras tentativas de extermínio da raça negra, das suas práticas religiosas e culturais continuam sendo em vão, pois os Terreiros de Candomblé entraram no terceiro milênio mais firmes, onde estes espaços têm se tornado grandes centros de formação para cidadania, afirmando o nosso direito de existência.

Ainda dentro das senzalas onde os negros ardiam em dor das chibatadas, ao modo que eram obrigados a professar a fé de “seus senhores”, mas que a saudade de sua terra natal e a intrínseca fé existente em cada um, fez com que inteligentemente eles rezassem para seus deuses de forma subjetiva, onde sob os santos de igreja seus deuses eram venerados. Essa catequese forçada, fez com que os deuses africanos passassem a ser associados aos santos da igreja católica, pois esta mistura se fazia necessário para que eles conseguissem manter a sobrevivência da fé.

Na década de 80, Mãe Stella de Oxossi, mãe de santo do Terreiro do Ilê Axé Opô Afonjá, onde reinou soberana por mais de quatro décadas, rompeu com os laços sincréticos, quando colocou no Museu criado por ela aqui no Opô Afonjá, os santos de igreja existentes desde a época das perseguições policiais, onde fatos que se tornaram contos dos livros de Jorge Amado, quando o temido delegado Pedrito Gordo invadia os Terreiros de Candomblé e quebrava os objetos ritualísticos, agredindo quem ali estivesse. Então, a partir deste feito, grandes nomes como de Mãe Menininha do Gantuá e Mãe Olga do Alaketu assinaram a sua carta manifesto, estendendo o seu intento em afirmar que: “Iansã não é Santa Bárbara”. 

A sua declaração ousada e quebra de uma tradição forçada, deixou algumas pessoas insatisfeitas, pois esta mistura faz parte da história de resistência e sobrevivência de um povo, o que é digno de louvores. Mas como dito, esta tradição foi forçada. A militância de Mãe Stella não foi contra a igreja católica, pois o respeito era um bem que ela trazia em suas ações. O seu ativismo era contra a associação dos santos da igreja com os Orixás e/ou outras divindades do Candomblé, até porque são religiões completamente diferentes. Portanto, compreendo que o sincretismo se tornou uma das maiores expressões culturais do nosso País, mas pelo meu prisma, há uma grande desvalorização da tradição do Candomblé, que sangrou pra chegar aonde chegou, e que sucintamente irei lhes dizer o por quê?

O Candomblé tem quatro pilares que o fundamentam como religião: Dogmas, Ritos, Tradição e Hierarquia. O iniciado passa por determinados ritos, onde durante algum tempo aprende a tradição do Candomblé e tudo sobre o Terreiro ao qual faz parte, sempre a partir da oralidade e o convívio diário. Nesta convivência, o neófito aprender a lidar com as diferenças dos outros irmãos; capacita-se em conviver com restrições, que muitas vezes são aprovações de vida, pois nem tudo o que gosto e quero, é tudo o que eu posso. Aprende a respeitar a hierarquia, que é um dos pontos primordiais dos quatro pilares, e, que nem sempre somos disciplinados quando o assunto é subordinação. Mas vale lembrar, que o respeito é mútuo! O mais velho também tem por obrigação respeitar o mais novo, sobretudo, zelar por ele. Pois bem... Será que todo este processo que o novel passou durante seu tempo recluso do mundo fora dos portões do Terreiro, onde se privou de comer o que gosta; de pular carnaval; de beber; namorar, etc... Se purificando e se conectando com o sagrado, só terá validade se ele for numa igreja pra ter a bênção de um padre? Digo isso, porque já ouvir de Mãe Stella que antigamente quando se passava o período dos rituais, o recém iniciado tinha que ir numa igreja católica para assistir a missa e receber a bênção do padre, outorgando o que o pai ou mãe de santo havia feito. Ou seja, todo o processo de aprendizagem e de iniciação religiosa não valia de nada!?
 
Eu acho muito linda as manifestações populares da Bahia, sobretudo da extrema importância da união do povo de Axé com o povo da igreja católica, quando se misturam nestes grandes encontros, a exemplo do 04 de dezembro quando se festeja Santa Bárbara, a segunda quinta-feira de janeiro quando acontece a Lavagem do Bonfim e a festa de Iemanjá em 02 de fevereiro. Isso mostra que podemos conviver com as diferenças, acima de tudo, respeitando a contraposição religiosa de cada um, pois as diferenças existenciais em cada ser é bem mais fácil de entender. A virgem Bárbara, uma jovem branca, nascida na Nicomédia, Túrquia, no século IV d.C. Se converteu ao cristianismo e aos mistérios da Santíssima Trindade contra a vontade de seu pai, sendo morta pelo próprio [fonte: Wikipédia]. Já Iansã, jovem negra, viveu em terras Nupê a.C, se tornando senhora da Cidade de Irá, na Nigéria. Foi criada por Oxossi e teve dois amores, Ogun e Xangô, mas que optou em conviver com o Rei de Oyó, onde dividia o segredo da manipulação do fogo [fonte: aprendizado a partir da oralidade dos Terreiros]. Portanto, os Orixás não deveriam ser associados com os santos de igreja, pois cada uma teve a sua vida, cada um teve a sua história. Dito isto, endosso a frase de Mãe Stella: “Iansã não é Santa Bárbara!”
 


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