Aos vinte e dois dias do m&ecirc;s de abril de 1916, em Ponta de Areia &ndash; Ilha de Itaparica nascia Gesilda Daniel de Paula. A menina Gesilda cresceu dentro dos Terreiros de culto aos Eguns &ndash; Ancestrais masculinos de uma determinada comunidade, onde s&atilde;o cultuados de maneira bem peculiar. Veja meu artigo sobre os Egunguns aqui no Farol: Egungun: A morte por debaixo do pano - Farol da Bahia. Filha de Ant&ocirc;nio Daniel de Paula &ndash; hoje Bab&aacute; Ob&aacute; Marun e Francisca Romana Damasceno, tia Gesilda teve como irm&atilde;os: Caetano; Jo&atilde;o de Xang&ocirc;; Crispim &ndash; mas conhecido por Cosme; Damiana; Adalgisa; Nilsa e Norbeta.

Em 1940, na flor da idade dos seus 24 anos, tia Gesilda recebe o cargo de Iy&aacute; Loxun, do Il&ecirc; Agboul&aacute;, cuja responsabilidade era arrumar o presente de Iemanj&aacute; e Oxun em 2 de fevereiro. At&eacute; hoje, um imenso cortejo sai do Alto do Bela Vista, passando pela frente da Igreja de Nossa Senhora das Candeias &ndash; ponto marco da trajet&oacute;ria do Il&ecirc; Agboula seguindo at&eacute; a praia de Ponta de Areia, onde saveiros e escunas aguardam para receberem o presente e levarem para alto mar. Durante muitos anos tia Gesilda serviu aos Eguns Amor&ocirc; Mi Tod&ocirc;, Onil&ecirc;ow&ocirc; e Ay&oacute;, assim como Iemanj&aacute; e Oxun.

Seu Ant&ocirc;nio &ndash; pai de tia Gesilda, era muito amigo de M&atilde;e Senhora, Iyalorix&aacute; do Op&ocirc; Afonj&aacute;. Senhora tinha uma casa de veraneio na Ilha, e toda vez que ia passar temporada por l&aacute; precisava de algu&eacute;m pra cuidar das tarefas de casa. Foi quando Senhora solicitou para seu Ant&ocirc;nio os servi&ccedil;os da jovem Gesilda. E a partir destes encontros que os la&ccedil;os de amizade entre Gesilda e Senhora se consolidaram. At&eacute; que em 1949, numa festa no Il&ecirc; Agboul&aacute;, M&atilde;e Senhora recebe o recado de Bab&aacute; Olukotun, onde ele disse que se fazia necess&aacute;rio a inicia&ccedil;&atilde;o da jovem Gesilda para o Orix&aacute;. Foi quando no ano seguinte a Iy&aacute; Loxun do Il&ecirc; Agboul&aacute; entra no famoso &ldquo;barco&rdquo; das dezesseis, passando a ser chamada de Oxun Omitobiyi &ndash; A &Aacute;gua que nasceu aqui &eacute; o suficiente. Eu fico aqui imaginando: se no tempo de hoje um barco com 6 pessoas j&aacute; &eacute; cansativo, imagine naquela &eacute;poca com 16?!

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A dinastia Daniel de Paula segue firme em ambos os lados &ndash; vivos e eternizados. Do lado de c&aacute; me resumo em citar: Alb&eacute;rico Raimundo, mais conhecido por Beco &ndash; Ogar&ocirc; da casa de Oxossi, iniciado por M&atilde;e Stella e &uacute;nico homem de quatro filhos que tia Gesilda teve. E por fim a jovem Roselaine de Ians&atilde;. Crian&ccedil;a nativa do Op&ocirc; Afonj&aacute; que aos 39 anos vividos, se inicia pelas m&atilde;os de M&atilde;e Ana de Xang&ocirc; em 2023. Do lado de l&aacute; temos: Pedro Daniel de Paula, que foi Alapini &ndash; sacerdote supremo do culto aos Ancestrais e hoje responde como Bab&aacute; Alateorun; Eduardo Daniel de Paula &ndash; Bab&aacute; Ob&aacute;erin (av&ocirc; de tia Gesilda); Oleg&aacute;rio Daniel de Paula &ndash; Bab&aacute; Ob&aacute;lad&ecirc; e Manoel Jacinto &ndash; Bab&aacute; Oj&ocirc;.

Em 18 de novembro de 2016, com um s&eacute;culo vivido &ndash; assim como seus antecessores que chegaram aos 100 e muitos at&eacute; ultrapassaram, tia Gesilda parte para o Orun com 66 anos de iniciada pra Oxun no Op&ocirc; Afonj&aacute;. Seu legado segue firme, junto aos Daniel de Paula, que permanecem aquecendo a tradi&ccedil;&atilde;o do Candombl&eacute; de Egun na Bahia, assim como sua neta que segue firme como Omorix&aacute; &ndash; Filha de Santo do Op&ocirc; Afonj&aacute;.

Salve as &Aacute;guas... Salve tia Gesilda de Oxun.

Eutr&oacute;pia Maria de Castro, mais conhecida por tia Pinguinho, era filha de Elvira Maria da Concei&ccedil;&atilde;o e pai n&atilde;o declarado. Nasceu em 30 de outubro de 1909 na Cidade de Salvador. Iniciou-se pelas m&atilde;os de Eug&ecirc;nia Anna dos Santos &ndash; M&atilde;e Anninha, no auge dos seus 27 anos de idade, em 1936. Al&eacute;m de tia Pinguinho, mais cinco pessoas compuseram este barco de Ia&ocirc;s &ndash; barco &eacute; &nbsp;a express&atilde;o dada &agrave; quantidade de pessoas iniciadas em uma s&oacute; leva: Jos&eacute; de Ogun; Cantulina de Ayr&aacute;; Alcendina de Oxun; No&ecirc;mia de Oxoguian &ndash; esta &nbsp;j&aacute; rememorada aqui [<a href="https://www.faroldabahia.com.br/coluna/tia-noemia-o-guerreiro-veio-novamente">Tia No&ecirc;mia: o guerreiro veio novamente - Farol da Bahia</a>] e Petronilha de Oxal&aacute; foram seus irm&atilde;os de santo. Seu oruk&oacute; &ndash; nome de santo &ndash; era Oxun Fumix&ecirc;: Aquela que faz por mim. Ondina Val&eacute;ria Pimentel &ndash; M&atilde;ezinha foi a primeira Iyakeker&ecirc; do Op&ocirc; Afonj&aacute;. Quando ela ascendeu ao cargo de Iyalorix&aacute;, o cargo de Iyakeker&ecirc; ficou vago e Tia Pinguinho ocupou com maestria. Ap&oacute;s a passagem de M&atilde;ezinha, quando tia Stella foi escolhida pra ser a Iyalorix&aacute; do Op&ocirc; Afonj&aacute;, tia Pinguinho &ndash; com toda a bagagem de conhecimento que tinha &ndash; serviu de farol para a nova Iyalorix&aacute; que acabara de chegar!

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Foto: Arquivo Pessoal

Tenho muitas lembran&ccedil;as de tia Pinguinho cantando e ensinando a forma correta de falar as palavras em Iorub&aacute;: as rememora&ccedil;&otilde;es s&atilde;o todas muito boas. Ela era rigorosa &ndash; bem Caxias mesmo &ndash; na pron&uacute;ncia das cantigas. Se cantasse errado, ela parava para corrigir. O Ioruba &eacute; uma l&iacute;ngua tonal: muitas vezes uma &uacute;nica palavra tem v&aacute;rios significados, a partir da sua acentua&ccedil;&atilde;o. Ent&atilde;o, ela dizia que t&iacute;nhamos que cantar direito, pois a gente n&atilde;o sabia quem estava nos ouvindo. Segundo ela, este aprendizado foi passado pela sua Iyalorix&aacute;. Tia Pinguinho tinha um jeito aparentemente severo, mas era s&oacute; aquele jeit&atilde;o dela. Ela era vi&uacute;va; teve tr&ecirc;s filhos; v&aacute;rios netos e bisnetos. Um de seus bisnetos, nascido um ano antes de sua partida para o Ọrun, conta que seu nome foi escolhido por ela, que dizia que ele era o seu interior, ou seja, o seu ego &ndash; passando a chamarem aquele beb&ecirc; de Egon Henrique. Ele destaca que acrescentaram o &ldquo;n&rdquo;, porque o cart&oacute;rio n&atilde;o aceitou um nome com tr&ecirc;s letras somente. Mas ele, ainda assim, continuou sendo o seu interior!&nbsp;

Aos vinte e nove dias do m&ecirc;s de janeiro de 1990, tia Pinguinho partiu para o Orun, ap&oacute;s complica&ccedil;&otilde;es do diabetes. O seu legado segueInesquec&iacute;vel: seus ensinamentos perduram at&eacute; os dias de hoje, fazendo jus ao seu nome, quando &ndash; com muito cuidado &ndash; ela nos ensinou a arte do cantar para os Orix&aacute;s. E assim fazemos at&eacute; o presente.

Salve tia Pinguinho, Ọṣun Funmiṣe: aquela que tamb&eacute;m fez por mim!

Os momentos que tive ao lado desta Inesquec&iacute;vel ficaram marcados e hoje trago aos leitores do Farol um destes momentos, at&eacute; porque, &ldquo;o que n&atilde;o se registra, o vento leva&rdquo; - prov&eacute;rbio cunhado por M&atilde;e Stella de Oxossi.

Elp&iacute;dia Raimunda dos Santos &eacute; mais uma das antigas &ldquo;tias&rdquo; do Il&ecirc; Ax&eacute; Op&ocirc; Afonj&aacute;. Nascida em Itaparica no in&iacute;cio do s&eacute;culo XX, em 10 de setembro de 1920, foi iniciada por Maria Bibiana do Esp&iacute;rito Santo &ndash; M&atilde;e Senhora de Oxun, em 05 de setembro de 1942. Foi para Rio de Janeiro, onde morou por muitos anos, retornando posteriormente para Salvador por determina&ccedil;&atilde;o de Xang&ocirc;. Seu oruk&oacute; &ndash; nome de santo era: Iwinṣọla &ndash; o esp&iacute;rito est&aacute; vigilante. Iwin &eacute; o ep&iacute;teto dos filhos de Oxal&aacute;.&nbsp;

Infelizmente, sigo com a dificuldade em conseguir alguns dados biogr&aacute;ficos dos meus Inesquec&iacute;veis. Portanto, destaco que essas informa&ccedil;&otilde;es biogr&aacute;ficas consegui com M&atilde;e Cl&eacute;o de Ians&atilde; &ndash; filha de santo de tia Stella e Iyalorix&aacute; do Il&ecirc; Asiwaj&uacute;, situado em Santana do Parna&iacute;ba, no Estado de S&atilde;o Paulo. Ela afirma as datas supracitadas pois tamb&eacute;m conviveu por muitos anos com tia Elp&iacute;dia. Considero como fonte segura.

Fora a conviv&ecirc;ncia que tive com tia Elp&iacute;dia aqui no Op&ocirc; Afonj&aacute;, tive o privil&eacute;gio em fazer algumas viagens com ela para o Il&ecirc; Asiwaj&uacute;, junto com tia Stella e alguns outros irm&atilde;os. Em 2003, no Asiwaj&uacute;, tia Elp&iacute;dia confirmava pelas m&atilde;os de M&atilde;e Stella, o t&iacute;tulo de Iy&aacute; Dagan &ndash; &not;cargo feminino de extrema import&acirc;ncia na liturgia do Candombl&eacute;. Tia Elp&iacute;dia foi a primeira Dagan desta casa de for&ccedil;a. Lembro de uma passagem muito engra&ccedil;ada e emocionante quando, l&aacute; em Santana, resolvi fazer um escaldado de peixe. Sempre que ia pra l&aacute;, levava daqui: farinha, dend&ecirc;, camar&atilde;o seco e pimenta. Na cozinha do Ax&eacute; tem um fog&atilde;o a lenha que adoro &ndash; sobretudo para fazer comidas. Quando tia Elp&iacute;dia soube que eu iria cozinhar e que o card&aacute;pio seria peixe, ela ficou bem animada, pois est&aacute;vamos h&aacute; dias comendo o b&aacute;sico, por conta da correria do Candombl&eacute;: feij&atilde;o, arroz e bife. E a noite, pizza [risos]. E como uma boa filha da Ilha de Itaparica, onde comer peixe &eacute; quase que um ritual, tia Elp&iacute;dia esperava confiante e bem animada.

As obriga&ccedil;&otilde;es j&aacute; tinham sido conclu&iacute;das. Ent&atilde;o, ela pediu pra Cl&eacute;o pegar a garrafa de vinho branco que havia guardado para uma ocasi&atilde;o especial. E comer peixe era uma boa ocasi&atilde;o! Enquanto eu cortava os temperos, temperava o peixe e controlava a intensidade do fogo pela chamin&eacute;, tia Elp&iacute;dia rememorava seus tempos de menina na Ilha. Todos &agrave; mesa, rindo e rememorando os tempos de outrora. Lembro nitidamente das gargalhadas de tia Stella com os gracejos de tia Elp&iacute;dia: &ecirc; saudade boa! Enquanto elas bebiam vinho, eu tomava minha cerveja, pois para labutar com o calor do fog&atilde;o a lenha, s&oacute; com uma gelada!

A cozinha era puro cheiro de coentro e dend&ecirc;. Comida pronta; mesa posta e todos apreensivos para provarem do meu tempero: tia Elp&iacute;dia salivava! Fiz quest&atilde;o de servi-la. Na primeira garfada, era vis&iacute;vel o seu deleite. O molho de pimenta malagueta com lim&atilde;o, cebola roxa e bastante coentro verdinho, descongestionava as vias a&eacute;reas, pois, todos fungavam [risos] &ndash; dadas as condi&ccedil;&otilde;es clim&aacute;ticas do local. Tia Elp&iacute;dia gostava muito de vinho branco e, &agrave; cada gole dado, era um punhado de pir&atilde;o com peixe. Era emocionante v&ecirc;-la comer, pois o meu tempero ativou suas mem&oacute;rias afetivas! Ela me agradecia dizendo que aquele peixe tinha gosto de inf&acirc;ncia. Chegou ao ponto de ela olhar pra tia Stella, pedir licen&ccedil;a e come&ccedil;ar a comer de m&atilde;o &ndash; um ato de conex&atilde;o ancestral com a comida: ela &ndash; literalmente &ndash; se lambuzava com a cabe&ccedil;a do peixe: ela comia rezando. Tia Stella ria e eu me sentia orgulhoso.

Trazer essas lembran&ccedil;as &agrave; tona me fizeram feliz! Ciente estou que estamos aqui de passagem. Chegou o momento de tia Epl&iacute;dia retornar para sua origem, deixando muita saudade.

A boa energia desta Iwin continua em vigil&acirc;ncia, agindo e nos protegendo.&nbsp;

&Ecirc;pa Bab&aacute;!

Nascida no ano de 1915, a minha Inesquec&iacute;vel de hoje era uma dileta filha de Oxun. Georgete Helena dos Santos, carinhosamente chamada de M&atilde;e Joca. Residia no tradicional bairro do Toror&oacute;, e, ganhava a vida como lavadeira e secret&aacute;ria do lar. Em 1946, iniciou a vida religiosa pelas m&atilde;os de Maria Bibiana do Esp&iacute;rito Santo &ndash; M&atilde;e Senhora, passando a ser chamada pelos Orix&aacute;s de Eyin Oxun &ndash; A Fertilidade. Por motivos pessoais veio morar no Op&ocirc; Afonj&aacute;, que, em um quartinho da casa de Oxal&aacute; passava a maior parte do tempo, e, aonde, quem caminhava pela ro&ccedil;a via sua cabecinha branca pela janela. Ap&oacute;s o falecimento da Iy&aacute;keker&ecirc; &ndash; a M&atilde;e Pequena da casa, Eutr&oacute;pia Castro, a afamada tia Pinguinho, que desde a gest&atilde;o de M&atilde;e Senhora seguia no cargo, tia Georgete assume o cargo de Iy&aacute;keker&ecirc;, passando ser a mais nova porta-voz da Iy&aacute;lorix&aacute; &ndash; M&atilde;e de Santo.

No ano de 1991 quando me iniciei tia Georgete j&aacute; era a Iy&aacute;keker&ecirc;. Ela tamb&eacute;m ocupava o cargo de Iy&aacute; Labak&eacute; &ndash; pessoa respons&aacute;vel pela alimenta&ccedil;&atilde;o dos iniciados, enquanto estiverem de obriga&ccedil;&atilde;o. Lembro-me que quando minha ojubon&atilde; &ndash; m&atilde;e criadora, Ditinha de Iemanj&aacute; ia me dar banho, M&atilde;e Joca j&aacute; estava de p&eacute; na beira do fog&atilde;o. Isso era aproximadamente entre 03h30min e 4 horas da manh&atilde;. Pois bem... Ap&oacute;s o &ldquo;gelado&rdquo; banho de folhas, tia Georgete sempre levava uma porcelana de mingau de aca&ccedil;&aacute; bem quentinho, o que aquecia o corpo na madrugada fria ap&oacute;s os banhos. No raiar do sol tamb&eacute;m levava: ch&aacute; com p&atilde;o, biscoitos e frutas. Quando era dia de Bori ou qualquer outro tipo de obriga&ccedil;&atilde;o que tivesse comida, de dentro do runk&oacute; &ndash; quarto de Ax&eacute;, eu ouvia sua voz: &ldquo;&Eacute; pra guardar o do ia&ocirc;!&rdquo; Dizia tamb&eacute;m: &ldquo;&Ocirc; menina!? J&aacute; separou a do ia&ocirc;?&rdquo; E sempre que batia uma fominha era s&oacute; cham&aacute;-la, que prontamente ela providenciava alguma guloseima &ndash; obviamente que dentro da dieta do que se pode comer neste per&iacute;odo.

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Foto: Reprodu&ccedil;&atilde;o

Tive a felicidade em ver Eyin Oxun em terra. Ela era de uma suavidade ao dan&ccedil;ar que fazia inveja a qualquer bailarina do Royal Ballet de Londres. Tanto como, Iy&aacute;keker&ecirc;, como, Iy&aacute;labak&eacute;, tia Georgete cumpriu com todas as determina&ccedil;&otilde;es de Xang&ocirc;, onde nas nuances da do&ccedil;ura e amargor que se faz necess&aacute;rio na forma&ccedil;&atilde;o dos mais novos, tia Georgete fez jus ao que lhe foi delegado; acolhendo e ensinando aos mais novos. Sua passagem pelo Op&ocirc; Afonj&aacute; foi de muita fertilidade, onde, a perpetua&ccedil;&atilde;o do legado se dar pelo nascimento de novos filhos. E durante a sua estada aqui no Aiy&ecirc;, o Op&ocirc; Afonj&aacute; foi bastante f&eacute;rtil.

Infelizmente em junho de 2008, tia Georgete partiu para o Orun deixando um enorme legado e muita saudade.

Salve tia Georgete de Oxun.&nbsp; 
&nbsp;

Essa Inesquec&iacute;vel era uma enciclop&eacute;dia viva com a qual tive a honra de passar horas conversando sobre o tempo antigo. Cantulina Garcia Pacheco era o seu nome, mas todos a conheciam como Tia Cantu. Nascida em 16 de mar&ccedil;o de 1900, tia Cantu era neta de Joaquim Vieira da Silva, Ob&aacute; Sany&aacute; &ndash; um dos apoiadores para a funda&ccedil;&atilde;o do Il&ecirc; Ax&eacute; Op&ocirc; Afonj&aacute;. Era filha adotiva de um Tenente do Ex&eacute;rcito, teve uma educa&ccedil;&atilde;o exemplar e muito r&iacute;gida. Em 18 de junho de 1936, tia Cantu foi iniciada pelas m&atilde;os de Eug&ecirc;nia Anna dos Santos &ndash; M&atilde;e Anninha, para o Orix&aacute; Ayr&aacute;, passando a ser chamada de Ayr&aacute; Tọl&aacute; &ndash; honrada por Ayr&aacute;. Ap&oacute;s o falecimento de M&atilde;e Anninha em 1938, tia Cantu foi morar no Rio de Janeiro com M&atilde;e Agripina de Aganju, que - neste tempo - cumpria determina&ccedil;&otilde;es de M&atilde;e Anninha e ocupava o cargo de Iyalax&eacute; do Op&ocirc; Afonj&aacute; do Rio.

Anos mais tarde, tia Cantu se torna Iyakeker&ecirc; da casa e, ap&oacute;s o falecimento de M&atilde;e Agripina em 21 de dezembro de 1966, ela se torna a terceira gera&ccedil;&atilde;o de matriarcas do Op&ocirc; Afonj&aacute; do Rio de Janeiro, se tornando Iyalax&eacute; da casa. Em 1988, por ordens de Xang&ocirc;, tia Cantu retorna pra Salvador, para reocupar o cargo de Iy&aacute; Egb&eacute; &ndash; M&atilde;e da Comunidade do Il&ecirc; Ax&eacute; Op&ocirc; Afonj&aacute; da Bahia, deixando o Ax&eacute; do Rio de Janeiro aos cuidados de M&atilde;e Regina de Iemanj&aacute;.&nbsp;&nbsp;At&eacute; os dias de hoje, tia Regina lidera como uma verdadeira Rainha. Tia Cantu era uma enciclop&eacute;dia viva. No v&iacute;deo-document&aacute;rio &ldquo;E da&iacute; Aconteceu o Encanto&rdquo;, inspirado no primeiro livro de M&atilde;e Stella, tia Cantu conta do tempo em que viveu ao lado de M&atilde;e Anninha e de algumas passagens sobre o Candombl&eacute; da Bahia. At&eacute; das persegui&ccedil;&otilde;es policiais, a exemplo das ocorr&ecirc;ncias com Proc&oacute;pio de Ogun, que era constantemente atormentado pelo temido delegado Pedrito Gordo. E, enquanto muitas pessoas liam ou assistiam sobre os contos de Jorge Amado, eu era agraciado com tais narra&ccedil;&otilde;es diretamente da fonte. Foi numa dessas conversas que algo sobrenatural aconteceu comigo. E n&atilde;o &eacute; est&oacute;ria!

Certa feita estava na casa de tia Stella em uma das minhas tardes de aprendizado sobre coisas de Ax&eacute; e, ao terminar o nosso papo, tia Stella me pediu para que eu levasse um quadro at&eacute; a casa de tia Cantu. Sua casa ficava a alguns metros da casa de tia Stella. Chegando l&aacute;, ela estava se preparando pra almo&ccedil;ar. Acreditem! No auge dos seus 100 anos, tia Cantu ainda tomava uma dose da velha destilada antes do almo&ccedil;o. E foi justamente nesta hora que eu cheguei. L&aacute; estava ela, sentadinha na cabeceira da mesa, olhando para o quintal. Do port&atilde;o me identifiquei, tendo minha entrada permitida. Educadamente, pediu pra sentar e me ofereceu uma dose. Disse que n&atilde;o estava bebendo e me esquivei. Informei-lhe o motivo de minha vista, dizendo que n&atilde;o iria demorar. Deixei o quadro em cima do sof&aacute; e j&aacute; fui me despedindo. Eis que ela me interrompe e come&ccedil;a a contar a hist&oacute;ria do quadro. Era uma imagem de Xang&ocirc;. Hist&oacute;ria vai, hist&oacute;ria vem, resultado; sentei-me. E, por pouco, n&atilde;o tomo uma dose. E talvez por isso, eu tenha mais motivos para acreditar que o qu&ecirc; aconteceu foi sobrenatural, e n&atilde;o efeito da bebida.

Tia Cantu come&ccedil;ou a falar dos antigos &ndash; daqueles da &eacute;poca dela. Eles eram verdadeiros bruxos. Contou de um velho que fazia a folha de akok&ocirc; se transformar em dinheiro. Mas depois explicou: n&atilde;o era que a folha se transformasse em dinheiro, mas quem o recebia, assim enxergava. Encantos daquele tempo! E a&iacute; ela falou de um velho que, j&aacute; bem velhinho, alimentava sua longevidade com a energia de outras pessoas. E foi ai que ela disse assim: &ldquo;Naquele tempo, os mais velhos faziam assim pra conseguir o que queriam.&rdquo; E completou dizendo: &ldquo;Me d&ecirc; sua m&atilde;o, meu sobrinho!&rdquo; E eu, inocente, dei. Ela come&ccedil;ou olhar em meu olho e n&atilde;o disse mais nada. Devagarzinho fui puxando minha m&atilde;o da dela e voltamos a conversar. Tornou a falar que os antigos faziam dessa forma e, mais uma vez, pediu a minha m&atilde;o. S&oacute; que, dessa vez, eu n&atilde;o dei. Desconversei, fui encerrando o assunto, me despedindo e fui embora. Acreditem! Foi s&oacute; eu fechar o port&atilde;o e pisar na ro&ccedil;a, comecei a sentir frio de bater os dentes. O sol era de pouco mais do meio dia: calor de, mais ou menos, trinta graus!&nbsp;&nbsp;C&eacute;u sem nuvens, sol tinindo e eu tremendo de frio. Cheguei em casa morrendo de dor de cabe&ccedil;a e, sem dar muitas explica&ccedil;&otilde;es pra minha m&atilde;e, fui me deitar. L&aacute; pras tantas, tia Stella ligou pra casa a fim de saber respostas sobre a entrega do quadro, haja vista que eu ainda n&atilde;o havia retornado pra lhe dar um feedback. Foi quando minha m&atilde;e disse que havia chegado com dor e calafrios.

Preocupada, tia Stella foi l&aacute; em casa. Espantada, ela disse: &ldquo;Como uma pessoa cai doente assim t&atilde;o de repente?&rdquo; Eu n&atilde;o ag&uuml;entava nem falar de tanta dor de cabe&ccedil;a. Tia Stella contava que meu corpo estava gelado. Ent&atilde;o a tia se transformou em m&atilde;e, e l&aacute; se foi a M&atilde;e Stella aos p&eacute;s de Xang&ocirc; para tentar compreender o qu&ecirc; acontecia comigo, sobretudo levando-se em conta que h&aacute; bem pouco tempo est&aacute;vamos juntos, conversando e eu me sentindo t&atilde;o bem! Para seu espanto, Xang&ocirc; disse que algo havia tirado as minhas for&ccedil;as. Xang&ocirc; orientou que fosse feito um eb&oacute; em mim. Logo ap&oacute;s o eb&oacute;, comecei a melhorar e, assim, consegui relatar pra tia Stella tudo o que havia acontecido. Diante do relato, tia Stella disse que tia Cantu havia puxado a minha energia ao apertar minha m&atilde;o. Pois Xang&ocirc; havia dito que alguma coisa havia feito isto. Eu fiquei impressionando com o fato.

Demorei anos pra falar abertamente sobre este assunto, pois poderia/pode soar distorcido pra quem n&atilde;o conhece a din&acirc;mica do Candombl&eacute;. E por mais que pare&ccedil;a assustador, hoje eu conto isso sem nenhum remorso ou temor. Muito pelo contr&aacute;rio: conto orgulhoso por ter convivido com pessoas de muito Ax&eacute; e energia sobrenatural. &Eacute; &oacute;bvio que hoje n&atilde;o irei facilitar [risos], mas tamb&eacute;m n&atilde;o acredito que existam mais tantas tias Cantus por ai, pois a magia do Candombl&eacute; est&aacute; cada dia mais enfraquecida; tantas tradi&ccedil;&otilde;es v&ecirc;m sendo quebradas e um novo formato de Candombl&eacute; (sobretudo &#39;midi&aacute;tico&#39;) vem imperando sem nenhuma refer&ecirc;ncia Ancestral nos levado ao enfraquecimento da magia e o crescimento descontrolado dos famosos Candombl&eacute;s de conveni&ecirc;ncias, onde tudo pode. Pois bem...

T&atilde;o honrada que foi, Tia Cantu viveu 104 anos at&eacute; o dia que foi chamada de volta para o Orun, em 27 de junho de 2004.

Salve a M&atilde;e da comunidade... Salve Ayr&aacute; Tọl&aacute;.

As mem&oacute;rias que tenho desta Inesquec&iacute;vel s&atilde;o do tempo em que ela viveu aqui em casa &ndash; no Op&ocirc; Afonj&aacute; e na casa do Bonfim, onde toda e qualquer reuni&atilde;o que acontecia, ela se fazia presente. Estou falando de tia Gildete de Ogun. Aqui na ro&ccedil;a, muita gente tinha medo dela, pois era r&iacute;gida com as quest&otilde;es de Ax&eacute;. Ela tinha limita&ccedil;&otilde;es por conta da perda da vis&atilde;o de um dos olhos. Tinha o costume de me tomar &agrave; b&ecirc;n&ccedil;&atilde;o em qualquer lugar &ndash; na rua, no mercado, no &ocirc;nibus, onde fosse. As pessoas na rua me olhavam sem entender nada: como uma senhora toma a b&ecirc;n&ccedil;&atilde;o a um jovem?! Muitas vezes eu morria de vergonha, pois muitas vezes acontecia de estar vindo da escola com os colegas, quando ela me abordava: &ldquo;B&ecirc;n&ccedil;&atilde;o meu pai!&rdquo; E os colegas sem entender o motivo, mesmo sabendo que eu era do Candombl&eacute;, indagavam. E vejam voc&ecirc;s &ndash; ela era Egbome antiga. Eu que tinha de tomar a b&ecirc;n&ccedil;&atilde;o primeiro.&nbsp;

Bonito de ver era seu Ogun em terra. Todos ficavam apreensivos por conta da sua limita&ccedil;&atilde;o, pois como n&atilde;o enxergava direito as Ajoi&ecirc;s ficavam todas atentas. Mas quando Ogun chegava ningu&eacute;m o segurava. Ele suspendia a saia com as m&atilde;os, jogava pra tr&aacute;s com as m&atilde;os nas &ldquo;cadeiras&rdquo; e saia andando por esta ro&ccedil;a numa rapidez que ningu&eacute;m conseguia alcan&ccedil;&aacute;-lo. As Ajoi&ecirc;s se viam loucas [risos]. N&atilde;o sei como Ele conseguia andar descal&ccedil;os na ro&ccedil;a com aquele tanto de pedrinhas. Ele andava de ponta a ponta da ro&ccedil;a, como se tivesse protegendo o per&iacute;metro. Ogun y&ecirc;! Iniciada por M&atilde;e Senhora, seu Oruk&oacute; &ndash; nome de santo, era Ogun Deyi &ndash; Ogun que chegou para resolver! Pensem num Orix&aacute; vivo! Era o Ogun de tia Gildete.

Muito r&iacute;spida, e por isso muita gente a temia, tia Gildete n&atilde;o tinha papas na l&iacute;ngua. Gra&ccedil;as a Ogun nos d&aacute;vamos muito bem, mesmo nos momentos em que ela me repreendia por algum motivo. Lembro-me de duas passagens super engra&ccedil;adas, onde nessa rispidez, ela ainda nos tirou bons risos. A primeira foi com um irm&atilde;o de santo que na &eacute;poca era abi&atilde;. Ele sempre foi e ainda &eacute; muito elegante ao se vestir, e, numa festa &ndash; n&atilde;o me lembro de qual Orix&aacute;, l&aacute; estava ele todo bem vestido. Quando tia Gildete olhou pra ele de cima a baixo e disse: &ldquo;(...) e ai fica este da&iacute; fantasiado de Ogan...! Apontado o dedo pra ele. O irm&atilde;o ficou sem entender o motivo da abordagem brusca, e eu comecei a rir.

A outra passagem foi quando estava conversando com outro irm&atilde;o chamado &Aacute;lvaro, mas todo mundo o conhece por Vino. Sabendo que ela era explosiva, fiquei a espera de ela passar, e disse: &ldquo;V&oacute; Anninha deixou esse Terreiro pra gente. Este Ax&eacute; &eacute; divino. Tia Gildete parou na hora e retrucou: &ldquo;Aqui n&atilde;o tem nada de Vino. O Ax&eacute; &eacute; de Xang&ocirc; e de Iemanj&aacute;! Que hist&oacute;ria &eacute; essa que o Ax&eacute; &eacute; de Vino?!&rdquo;At&eacute; eu explicar que n&atilde;o falei &ldquo;de Vino&rdquo; e sim o adjetivo proveniente da inspira&ccedil;&atilde;o divina dos Orix&aacute;s, foi um Olorogun &ndash; Guerra. Ria eu e ria Vino. Tia Gildete era uma pessoa bem dif&iacute;cil. Mas com jeitinho eu conseguia trazer ela pra mim [risos].

Infelizmente o tempo de tia Gildete aqui no Aiy&ecirc; chegou ao fim. Ela deixou muita saudade, principalmente Ogun, que forte e imponente aonde chegava resolvia as demandas, e sempre deixando um rastro de muito Ax&eacute; e boas energias.

Viva a Ogun!

O meu inesquec&iacute;vel de hoje trazia em sua ess&ecirc;ncia a tranq&uuml;ilidade, equil&iacute;brio e as virtudes de um homem bom. At&eacute; sua voz transmitia placidez. Filho de Oxal&aacute; que era e, Ogan de Oxun, Cl&aacute;udio Costa Pinto foi um grande irm&atilde;o &ndash; tipo aquele irm&atilde;o mais velho, que est&aacute; sempre preocupado com o desenvolvimento do irm&atilde;o mais novo. Esse carinho e preocupa&ccedil;&atilde;o eram com todos aqueles que estavam ao seu redor. Eu, Bi&eacute; e Rubinho eram os que sempre acompanhavam Cl&aacute;udio pra tudo. O carinho era de tal propor&ccedil;&atilde;o, que ele chegou a batizar Bi&eacute;.

Cl&aacute;udio era um desenhista de m&atilde;o cheia. Lembro-me certa vez, da gente jogando bola na ro&ccedil;a, e ele encostado a uma &aacute;rvore de prancheta, papel e l&aacute;pis na m&atilde;o. Achei que estivesse escrevendo alguma coisa. Enquanto jog&aacute;vamos, ele atentamente assistia ao jogo e, simultaneamente rabiscava alguma coisa. Ao terminar a partida, ele chamou a meninada e pediu para que fech&aacute;ssemos os olhos. Quando abrimos, ele nos mostrou em forma iconogr&aacute;fica a imagem da gente jogando bola. Uma perfei&ccedil;&atilde;o de desenho! Cada um de n&oacute;s conseguia se identificar nas figuras. Foi muito bacana aquele momento. Lembro-me tamb&eacute;m que em algumas festas &ndash; Oxossi e Oxun principalmente, ele comprava camisas para o coral e para os Alab&ecirc;s. Camisas estas que ele mesmo desenhava e pintava, onde depois de prontas dava para cada um de n&oacute;s.

Foi Cl&aacute;udio quem nos levou para os Filhos de Gandhy &ndash; eu, Bi&eacute; e Rubinho. Todo domingo Cl&aacute;udio saia da Pituba &ndash; bairro onde morava; passava aqui na ro&ccedil;a para nos pegar e segu&iacute;amos para o Pelourinho. Assist&iacute;amos a missa na Igreja Ros&aacute;rio dos Homens Pretos e, ap&oacute;s a missa, &iacute;amos todos para sede do Gandhy pra poder ensaiar. Depois do ensaio, almo&ccedil;&aacute;vamos e ele nos trazia de volta pra ro&ccedil;a. L&aacute; no Gandhy conhecemos H&eacute;lio &ndash; grande Alab&ecirc; do Gantois (in memoriam) e, seu irm&atilde;o, Ulisses, ex-diretor do Gandhy e que hoje segue com um trabalho percussivo no bairro de Itapu&atilde;. H&eacute;lio e Ulisses contribu&iacute;ram para que nos torn&aacute;ssemos os primeiros diretores da bateria mirim do Afox&eacute; Filhos de Gandhy. E Cl&aacute;udio, assim como um irm&atilde;o mais velho, se enchia de orgulho com o nosso desempenho.

Para onde ele ia &ldquo;carregava&rdquo; eu, Bi&eacute; e Rubinho. Rodamos por tantos Candombl&eacute;s nesta Salvador [risos]. Ele fazia uma festa danada pra nos apresentar, seja l&aacute; pra quem fosse. Era vis&iacute;vel seu orgulho por n&oacute;s. Ele nos apresentava ao povo parecendo que &eacute;ramos artistas famosos &ndash; e ele nosso f&atilde; n&uacute;mero 1. O &ldquo;garoto Bi&eacute;&rdquo; era o seu xod&oacute;. Anos mais tarde Cl&aacute;udio casou-se e teve uma filha. Seu olho brilhava ao falar dela. Cl&aacute;udio era um homem de muito amor e, devo&ccedil;&atilde;o aos Orix&aacute;s. Engenheiro de forma&ccedil;&atilde;o e Ogan de Oxun por devo&ccedil;&atilde;o, Cl&aacute;udio fazia jus &agrave;s atribui&ccedil;&otilde;es que os Orix&aacute;s lhes incumbiram a partir do sentimento de fraternidade e comprometimento que tinha com o Il&ecirc; Ax&eacute; Op&ocirc; Afonj&aacute;.

Inesquec&iacute;vel como seu carinho, Cl&aacute;udio permanece vivo em sua ess&ecirc;ncia.

&Ecirc;pa Bab&aacute;!

As minhas lembran&ccedil;as de hoje s&atilde;o pequenos fragmentos de um per&iacute;odo no qual ainda era uma crian&ccedil;a de aproximadamente cinco anos de idade. No entanto, o sentimento que tenho &eacute; de muita saudade. At&eacute; hoje n&atilde;o sei porque eu tinha tanta admira&ccedil;&atilde;o por este Inesquec&iacute;vel. Tio J&uacute;lio &eacute; o meu Grande Inesquec&iacute;vel de hoje. Grande porque ele era um homem de quase dois metros de altura. Sabe aqueles negr&otilde;es jogadores de basquetebol? Pois bem: esse era Tio J&uacute;lio!

As lembran&ccedil;as que tenho dele come&ccedil;am com a imagem de um homenzarr&atilde;o. Tio J&uacute;lio era um fidedigno filho de Oxal&aacute;. Sempre vestido com roupas bem brancas: cal&ccedil;a, camisa de manga comprida e boina; costumava caminhar pela ro&ccedil;a com seu charuto na m&atilde;o. Morava ao lado do barrac&atilde;o de festas com sua esposa, tia Celina de Nan&atilde;. Egbome Tutuca &ndash; j&aacute; citada aqui algumas vezes, &eacute; a minha refer&ecirc;ncia em algumas informa&ccedil;&otilde;es. Tutuca viu muita coisa aqui na ro&ccedil;a. Ela me disse que era ele quem cuidava do Il&ecirc; Ib&oacute; &ndash; Casa de adora&ccedil;&atilde;o aos Ancestrais. Tutuca, tamb&eacute;m com vaga lembran&ccedil;a, arrisca em dizer que ele era Ogan do Oxal&aacute; da finada Patu. Essa eu n&atilde;o conheci. Tia Patu foi a Ojubon&atilde; &ndash; M&atilde;e cuidadora &ndash; de Tutuca. 
Diferente de Nezinho, Inesquec&iacute;vel lembrado em minhas mem&oacute;rias &ndash; veja aqui: Nezinho: o chamador de Orix&aacute; - Bahia | Farol da Bahia, que tinha medo de Egun, Tio J&uacute;lio tinha paix&atilde;o pelo culto. Chegou a ser Amuixan, esp&eacute;cie de pr&eacute;-sacerdote, assim como Nezinho. No entanto, era frustrado por n&atilde;o ter se tornado Oj&eacute; &ndash; sacerdote do culto aos Eguns, pois a idade avan&ccedil;ada n&atilde;o o permitia tal fa&ccedil;anha. Lembro-me de uma passagem, onde uma comitiva de africanos visitava a ro&ccedil;a. Tio J&uacute;lio se misturava com aqueles africanos como se fizesse parte do grupo. Eu s&oacute; tinha cinco anos de idade, mas me lembro nitidamente deste momento. Me sentia como n&atilde;o estivesse aqui na ro&ccedil;a. Parecia que estava em outro lugar. Hoje consigo perceber que o lugar que achava que estava era a &Aacute;frica.

Tutuca me contou um epis&oacute;dio muito engra&ccedil;ado no qual Lucas de Omolu, aquele que me fotografou com os test&iacute;culos do boi nas m&atilde;os &ndash; citado em Nivaldo, o Ninja: aquele que regressou pra casa - Artigos | Farol da Bahia e bebeu &aacute;gua no copo de dentadura &ndash; descrito no artigo Tia No&ecirc;mia: o guerreiro veio novamente - Bahia | Farol da Bahia, olhou para os p&eacute;s de Tio J&uacute;lio e perguntou: &ldquo;Tio J&uacute;lio! O senhor cal&ccedil;a 70 &eacute;?&rdquo;: foi tanta risada na hora, conta Tutuca saudosa. Eu acho que minha admira&ccedil;&atilde;o por Tio J&uacute;lio era algo Ancestral, tudo me impressionava nele: sobretudo sua altura, eu olhava pra ele como se tivesse olhando pro c&eacute;u. Quando ele me via, sempre me tratava com muito carinho. Fazia carinho em minha cabe&ccedil;a e &agrave;s vezes quando vinha da quitanda de seu L&aacute;u, trazia pra mim amendoim com aquelas coberturas de chocolate e cobertura colorida.

Tio J&uacute;lio partiu para o Orun de forma inesperada. Lembro-me nitidamente do desespero e da correria do povo. Eu n&atilde;o queria acreditar, mas o Gigante partia pra nunca mais voltar.&nbsp;

Salve Tio J&uacute;lio, o Gigante.

<img alt="" src="/fotos/farol_colunas/707/mg/WhatsApp Image 2024-04-13 at 15.35.20..jpg" style="width: 709px; height: 1024px;" />

Hoje irei falar de On&eacute;sio dos Santos, mais conhecido por Nezinho ou Alab&ecirc; Nezinho. Esse Inesquec&iacute;vel foi o respons&aacute;vel pela minha forma&ccedil;&atilde;o sacerdotal como Alab&ecirc; &ndash; Instrumentista respons&aacute;vel pelos toques e preserva&ccedil;&atilde;o dos Il&uacute; &ndash; os Atabaques. Filho de Omolu, Nezinho &eacute; filho do Op&ocirc; Afonj&aacute; desde a gest&atilde;o de M&atilde;ezinha &ndash; segundo relato de Egbome Tutuca. Ela me disse que quando aqui chegou, Nezinho j&aacute; se fazia presente. Acredito que ele seja bem mais antigo do que parece. Presumo que ele seja da &eacute;poca de M&atilde;e Senhora. Mas o fato &eacute; que quando eu nasci, Nezinho j&aacute; era o Grande Alab&ecirc; do Op&ocirc; Afonj&aacute;. Toda e qualquer obriga&ccedil;&atilde;o na qual se fazia necess&aacute;ria a presen&ccedil;a dos Atabaques, Nezinho estava apostos. Assim como o adj&aacute; &ndash; campana utilizada pela Iyalorix&aacute; para chamar o Orix&aacute;. A utiliza&ccedil;&atilde;o deste instrumento &eacute; indispens&aacute;vel nas m&atilde;os da m&atilde;e de santo; Nezinho era com o aguidavi &ndash; baqueta utilizada nos Atabaques para a produ&ccedil;&atilde;o do som. Ele n&atilde;o largava seu aguidavi por nada.

A sua participa&ccedil;&atilde;o em minha forma&ccedil;&atilde;o como Alab&ecirc;a contece a partir da minha paix&atilde;o pelos Atabaques e pela minha voca&ccedil;&atilde;o como tocador. No entanto, tal habilidade nunca era reconhecida pelo Mestre Nezinho, por mais que eu dissesse que sabia tocar: ele j&aacute; tinha &ndash; at&eacute; &ndash; me visto tocando! A desculpa que ele me dava era porque a minha posi&ccedil;&atilde;o no Terreiro era outra &ndash; eu sou Ob&aacute; de Xang&ocirc; e, ele dizia: &ldquo;seu lugar &eacute; sentado ao lado da m&atilde;e de Santo!&rdquo; E para amenizar minha frustra&ccedil;&atilde;o e desejo de tocar naqueles instrumentos sagrados, era minha m&atilde;e quem sofria as consequ&ecirc;ncias, pois seus baldes serviam como atabaques improvisados. Al&eacute;m disto, tamb&eacute;m confeccionava pequenos instrumentos feitos com latas de leite, resto de couro e el&aacute;sticos para afina&ccedil;&atilde;o. E assim, fui aprimorando o meu intento. 
Quantas madrugadas eu levantei para ajud&aacute;-lo a &ldquo;salvar a casa&rdquo; na alvorada: esse &eacute; o termo que os antigos utilizavam e que, ainda hoje, fazemos uso. Salvar a casa &eacute; o pren&uacute;ncio da festa &agrave; noite. Na maioria das vezes ele sempre estava sozinho. Quando ouvia os primeiros toques do Atabaque, antes mesmo do nascer do sol, eu despertava. Saia de casa na pontinha dos p&eacute;s, sem que meus pais percebessem e seguia para o barrac&atilde;o. Acreditem no que digo: mesmo assim &ndash; sem plat&eacute;ia e sozinho &ndash; Nezinho n&atilde;o me deixava tocar nos Atabaques! Entregava-me o agog&ocirc; e dizia: &ldquo;Para ser um bom Alab&ecirc; e poder tocar no Atabaque, primeiro voc&ecirc; tem que come&ccedil;ar pelo xequer&ecirc; - caba&ccedil;a. Depois passa para o agog&ocirc;. &Eacute; o Agog&ocirc; quem rege a orquestra. Ele &eacute; o maestro! Ent&atilde;o, toque primeiro o agog&ocirc; pra depois passar para o L&eacute;; depois para o Rumpi e, assim, poder tocar no Run. Tenha paci&ecirc;ncia!&rdquo; Desse jeito, ele ficava me dando esse &ldquo;ch&aacute; de espera&rdquo;. Contudo, comecei a perceber que essa proibi&ccedil;&atilde;o de n&atilde;o me deixar tocar n&atilde;o era pelo simples fato de eu ser Ob&aacute;. Nezinho era muito Caxias, afinal de contas, ele havia passado por procedimentos ritual&iacute;sticos, assim como os Atabaques. Portanto, comecei a perceber que todo aquele rigor era a forma que ele tinha de prote&ccedil;&atilde;o com o sagrado, ou seja, os Atabaques. Eu era somente um garoto fascinado em tocar. Aprendi que tocar n&atilde;o &eacute; simplesmente tirar som do instrumento: &eacute; se conectar diretamente com o Orix&aacute;, pois &eacute; atrav&eacute;s dos Atabaques que os Orix&aacute;s chegam no Aiy&ecirc; - Terra. Hoje eu sei disso!

Al&eacute;m de um ex&iacute;mio tocador de Atabaque, Nezinho tamb&eacute;m foi um habilidoso artes&atilde;o de esculturas em madeira. Foi ele quem nos ensinou a fazer os t&atilde;o famosos Ox&ecirc; &ndash; Machado de Xang&ocirc;. Eu; Tavinho; Rubinho; Carlos Geraldo; Uilton; Petinho; Valnei e Bi&eacute; &eacute;ramos os seus disc&iacute;pulos. Eu n&atilde;o levava muito jeito: os meus sempre quebravam, mas os meninos at&eacute; hoje s&atilde;o craques. Meu neg&oacute;cio era tocar [risos]. Ap&oacute;s a partida de Nezinho para o Orun, uma nova gera&ccedil;&atilde;o come&ccedil;ou a seguir a pr&aacute;tica da confec&ccedil;&atilde;o do Ox&eacute;, mesmo sem o terem conhecido ou aprendido com ele. Eduardo, mais conhecido por Guel&ecirc; e Jefferson &ndash; Nino s&atilde;o provas de que a Ancestralidade &eacute; viva, pois s&atilde;o caprichosos desde a escolha da madeira para fazer esculturas em miniaturas. Eles usam desde o entrecasco da cajazeira at&eacute; madeiras mais robustas, como ma&ccedil;aranduba. Os meninos s&atilde;o especialistas. Hoje quem segue com esta tradi&ccedil;&atilde;o &eacute; o Guel&ecirc; &ndash; filho de Omolu, assim como o velho Nezinho.

Em conversa com Egbome Tutuca, ela me contou v&aacute;rias passagens engra&ccedil;adas com Nezinho. Se eu compilar com as minhas reminisc&ecirc;ncias, daria um livro. Aqui agora, escrevendo essas linhas, me flagro em alguns momentos fechando meus olhos e quase consigo ouvir sua voz me chamando para pegar comida pra ele nos dias de festa. Sem vergonha, aqui eu confesso: eu realizava esta tarefa objetivando &ndash; em algum momento &ndash; tocar junto ao velho Mestre. Em outras palavras, ficava puxando seu saco [risos]. &ldquo;Adrianinho, por favor, compre um charuto pra mim l&aacute; em L&aacute;u&rdquo;; Adrianinho, por favor, segure o Atabaque aqui...&rdquo; em todas as ocasi&otilde;es, eu, prontamente, estava apostos. Enfim, o grande dia chegou. Num dia de festa pra Ogun, eu pude sentar e tocar ao lado do Mestre. Os olhos atentos aos Orix&aacute;s e tamb&eacute;m em mim n&atilde;o me constrangiam. Eu sabia o que estava fazendo. Aprendi a me conectar com o Orix&aacute;, e por isso dei o meu melhor: fui aprovado. No entanto, ele n&atilde;o cansava em me dizer: &ldquo;o seu lugar &eacute; do lado da m&atilde;e de Santo. Voc&ecirc; &eacute; Ob&aacute;!&rdquo; [risos]. Sabendo disso, eu sempre esperava ser chamado, ou na aus&ecirc;ncia dos outros Alab&ecirc;s eu ficava ali &ndash; com &nbsp;meu aguidavi na m&atilde;o &ndash; aguardando o meu momento.

Foi Nezinho quem me ensinou a chamar os Orix&aacute;s atrav&eacute;s dos Atabaques.&nbsp;

Salve Nezinho, o Chamador de Orix&aacute;.

Adriano Azevedo

Todos os textos de Adriano Azevedo

As Águas nasceram aqui: tia Gesilda de Oxun

Tia Pinguinho: Oxun fez por mim

Tia Elpídia de Oxalá: boas energias em vigilância

Sônia de Iansã: o despertar do fogo

Tia Georgete: um Axé de fertilidade

Tia Cantu: honrada por Ayrá

Tia Gildete: Ogun que chega e resolve toda e qualquer demanda

Ogan Cláudio: o irmão mais velho

Tio Júlio: um Gigante de fé

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