Mulher atribui diagnóstico tardio de câncer a racismo; sociedade de oncologia lança guia contra preconceito
Para evitar que situações como a enfrentada por Léia se repitam, a Sboc (Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica) lançou o Guia de Diversidade

Foto: José Cruz / Agência Brasil
PATRÍCIA PASQUINI
Aos 25 anos, a técnica em logística Léia Silva, hoje com 39, moradora de uma comunidade em Itaquaquecetuba, na Grande São Paulo, sentiu um nódulo na mama esquerda durante o banho.
Correu para uma UBS (Unidade Básica de Saúde) e lá se deparou com o primeiro obstáculo: a consulta com um ginecologista só iria ocorrer em três meses. Léia marcou presença na fila do posto todas as madrugadas, até ser atendida, após cerca de duas semanas, num encaixe.
A ultrassonografia pedida pelo médico foi feita numa clínica particular para acelerar o atendimento, mas a paciente só teve acesso ao mastologista cerca de um ano depois.
"Eu já tinha 26 anos. Minha idade e o tempo foram barreiras. Na consulta, fiquei cinco minutos na sala. Não houve exame clínico, só... 'Você é muito jovem. Isso não é nada. Vitamina E'. Nem cheguei a sentar, mas tinha cadeira lá. Pediram para eu retornar em seis meses, tempo que se estendeu para mais um ano. Voltei lá com 27", conta.
Na consulta, o profissional afirmou que era um cisto, no máximo um nódulo de gordura. Nem a examinou e ainda disse --em tom de reclamação-- que "mandavam qualquer coisa" para o consultório.
"Eu fui anulada. O médico mandou eu retornar em seis meses, mas nunca são só seis meses. Na outra consulta, mais uma vez, olharam a minha idade. Talvez a minha cor, porque eu não me sentei, fiquei cinco minutos naquela sala. De cabeça baixa e com uma caneta na mão, o médico falou 'você é muito jovem para ter câncer. Fica tranquila.' E fui dispensada. No quarto ano tentando ter um diagnóstico, faltando pouco para eu completar 29 anos, entrei em desespero", relata Léia.
"No quarto profissional que fui, pedi para colocar a mão. 'Olha, tem muito caroço na minha mama, estou com câncer'. Ele me disse 'o médico aqui sou eu, você não se dá diagnóstico'. Saí de lá pensando se não era coisa da minha cabeça. Meu filho tinha nove anos. Eu me questionei se eu iria vê-lo crescer. Hoje ele está fazendo 17 anos. Venho de uma realidade que, para ter voz, a gente é encarada como a 'neguinha metida'."
Quando recebeu atendimento correto, Léia sentiu-se aliviada, mesmo com diagnóstico de câncer de mama grau 3 --25 dias antes de completar 29 anos.
Para evitar que situações como a enfrentada por Léia se repitam, a Sboc (Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica) lançou o Guia de Diversidade.
O documento foi produzido pelo Comitê de Diversidade da Sboc e apresentado no 26° Congresso Brasileiro de Oncologia Clínica, realizado de 6 a 8 de novembro, no Rio de Janeiro. Ele traz orientações a oncologistas, equipes multiprofissionais e gestores de instituições sobre cuidado inclusivo de negros, população LGBTQIAPN+, indígenas e pessoas com deficiência.
Segundo Jessé Lopes da Silva, oncologista clínico, pesquisador no Inca (Instituto Nacional do Câncer) e membro fundador do comitê, o grupo foi criado em 2023 para dar voz a populações em posição de desfavorecimento, de desvantagem socioeconômica e sociodemográfica. "É quem encontra barreiras de acesso à informação, a exames preventivos e melhor tratamento de saúde", explica.
"O guia traz a apresentação de um problema e as propostas de soluções e estratégias. As barreiras levantadas pelo preconceito e racismo, quando se fala em população negra, pelo racismo estrutural, institucional e também pelo viés implícito, que é a questão do inconsciente coletivo, fazem com que essas populações vulneráveis recebam tratamentos subóticos nesse cenário", afirma o médico.
Para Abna Vieira, oncologista no Icesp (Instituto do Câncer do Estado de São Paulo) e Oncoclínicas São Paulo, membro do grupo de pesquisa em saúde da população negra da Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo) e membro fundadora do comitê de Diversidade da Sboc, a população negra é mais sujeita a microagressões no dia a dia e no consultório.
Essas microagressões são comentários, ações e comportamentos sutis --intencionais ou não-- que passam mensagens hostis e depreciativas para grupos minorizados (considerados discriminados e/ou excluídos).
"Quando um paciente negro recebe um atendimento médico inadequado, a gente não consegue falar que isso não seja racismo. Há vieses implícitos e eles estão diretamente relacionados ao mau atendimento", explica a médica.
Um estudo conduzido nos Estados Unidos e publicado na revista acadêmica JAMA (Journal of the American Medical Association), em fevereiro, relaciona a discriminação racial à capacidade do corpo de combater o câncer e ao crescimento de tumores. A pesquisa, com foco em câncer de mama, sugere que o estresse e o preconceito estão diretamente ligados ao aumento da inflamação no organismo e ao desenvolvimento de tumores mais agressivos.
Na opinião de Abna, nem sempre é fácil para o paciente identificar que uma situação configura racismo ou preconceito. Desconfiar que pode ter sido vítima de tal agressão já é motivo para denúncia. Basta procurar os canais de ouvidoria das secretarias de saúde e do próprio serviço e relatar o ocorrido. Também é possível acionar a polícia e registrar um boletim de ocorrência.
A repórter viajou a convite da Sboc (Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica).

