Vivência cotidiana do racismo pode se converter em trauma racial

No Dia da Consciência Negra, psicóloga alerta para saúde mental da pessoa preta

Por Ane Catarine Lima
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Vivência cotidiana do racismo pode se converter em trauma racial

Foto: Reprodução/Pixabay

Muitas vezes atribuído apenas ao preconceito de cor, o racismo é um sistema de opressão que, além de negar espaço e direitos a um determinado grupo, deixa marcas psicológicas profundas. Para entender a relação entre racismo e saúde mental, no entanto, é preciso se atentar ao fato de que trata-se de uma forma de violência que por vezes é silenciosa e impacta na construção da subjetividade de pessoas negras por meio de sentimentos de inferioridade, baixa autoestima, não pertencimento e autocobrança.  

Visando fomentar as discussões sobre o Dia da Consciência Negra, celebrado neste domingo (20), a psicóloga Ediane Ribeiro alerta para o trauma racial. Em entrevista ao Farol da Bahia, ela afirmou que o racismo nega à pessoa negra a capacidade de se perceber digno de existir exatamente como é. Por isso, as consequências dessa violência podem ser inúmeras. 

“O trauma racial diz respeito ao impacto psicológico, físico e na saúde mental de pessoas que sofreram violência, estresse ou discriminação em função da cor da pele ou que assistiram outras pessoas pretas sofrerem esse tipo de violência”, explicou a especialista.

“As consequências do trauma racial são tão diversas quanto difíceis de mapear por completo. Podem ir de sintomas que serão reconhecidos como uma ansiedade generalizada como, por exemplo, internalização de crenças de não ser suficiente, baixa autoestima e dificuldade de relacionamentos, até inúmeros adoecimentos pela exaustão do sistema neuroendócrino na sustentação da resposta ao estresse por longos períodos”, completou.

Como outros tipos de trauma, segundo Ediane, o estresse traumático baseado na raça também tem como sintomas o estado de alerta constante, dificuldade para relaxar, alterações de sono e alimentação, além da desregulação emocional. 

Racismo faz mal à saúde 

Ao reforçar que o trauma racial é uma reação a experiências de racismo, Ediane Ribeiro afirmou que essa forma de violência pode causar profundos impactos na vida de negras e negros. Segundo ela, experiências traumáticas ativam respostas diárias ao estresse e fazem com que as vítimas desenvolvam um estado de hipervigilância.

“Imagine que você é uma criança que cresce aprendendo que o fato de ter nascido negra a torna menos bela, aceita ou pode colocá-la em situações de risco como, por exemplo, sofrer uma abordagem policial violenta. Isso restringe sua autenticidade, autoestima, afetividade, ambição e capacidade de sonhar”, afirmou a psicóloga. 

"Essa sensação constante de que a qualquer momento você pode ser discriminado ou sofrer uma violência racial leva a hipervigilância: um sistema de alerta do cérebro sempre ligado e produzindo resposta ao estresse. Nosso organismo não foi projetado para essa experiência estressora sem intervalos e, com o tempo, isso pode abrir janelas para vários tipos de adoecimentos físicos e psíquicos”, completou.

Embora ainda não esteja inserido em diretrizes como o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-V), da Associação Americana de Psiquiatria, Ediane afirma que o trauma racial é um fator de risco para transtorno do estresse pós-traumático e incluí-lo como tal nos manuais diagnósticos é uma das propostas atuais de grandes pesquisadores.

“Durante muito tempo, os impactos das experiências com racismo foram ignorados dentro da saúde mental. Essa discussão é relativamente recente e oficialmente o principal manual de diagnósticos de doenças e transtornos psíquicos, que é o DSM, não inclui o trauma racial como fator de risco para transtorno do estresse pós-traumático, embora já existam estudos bastante relevantes que apontam para isso”, explicou a especialista.

De acordo com a psicóloga, o transtorno do estresse pós-traumático é a proposta diagnóstica para um conjunto de sinais e sintomas que se prolongam no tempo após uma experiência traumática. Alguns desse sinais incluem:

-Revivência do trauma através de pesadelos, memórias intrusivas, flashbacks e pensamentos repetitivos sobre a experiência;
-Comportamentos de evitação de lugares e pessoas que possam de alguma forma lembrar a experiência, tendência ao isolamento, embotamento emocional;
-Hiperativação crônica do sistema nervoso, que leva a um estado de alerta constante, dificuldade para relaxar, irritabilidade, explosões de raiva, alterações no sono, foco e concentração.

Tratamento 

Além de práticas de autocuidado e mudanças no estilo de vida, o apoio profissional é fundamental para superar o trauma racial.  Conforme Ediane, o tratamento se assemelha ao de outros tipos de trauma no que diz respeito, por exemplo, a incluir terapia com estratégias de regulação emocional.

“A grande diferença que os profissionais que fazem atendimento a pessoas pretas precisam ter em mente é que estamos diante de um trauma crônico, ou seja, a experiência passada pode se repetir a qualquer momento. Diferente de quando o trauma foi um episódio específico no passado. Por isso, além do processamento das memórias traumáticas é importante auxiliar a pessoa a desenvolver recursos internos e externos para lidar com as situações estressoras que podem acontecer. A psicoeducação e a educação somática são grandes auxiliares nisso”, disse a psicóloga.

De acordo com ela, durante o tratamento, também é importante incentivar pessoas pretas a buscarem rede de apoio. “A sensação de isolamento e desamparo é muito prejudicial nas experiências traumáticas. Saber que não precisa passar por isso sozinha é extremamente importante para minimizar as chances que esse trauma se transforme em sintomas ou adoecimentos mais graves”, explicou Ediane.

“[É importante] entendermos que as estratégias de enfrentamento ao racismo e do trauma racial não são de responsabilidade individual. Esse é um tipo de trauma que envolve uma estrutura social, então enfrentá-lo é responsabilidade de toda a sociedade”, concluiu. 


 

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