Reza, uma lenda ocidental, que a coruja rasga mortalha, ecoa seu grito agourento, a fim de anunciar, o declínio ou a morte futura de crenças e valores preciosos para o povo do lugar. Foi o que escutamos no voto pronunciado pela douta Ministra Carmen Lúcia, anunciando o fim da representação popular, presente em todas as Constituições dos países democráticos do mundo, incluindo o Brasil.
Para a veneranda Juíza, “nós estamos entrando no período da democracia apresentativa (sic). O cidadão não quer mais se representar. Ele quer se apresentar”. Intui que tal querência coletiva decorre das tecnologias, dos prodígios científicos inaugurados pela revolução das comunicações, que deu voz aos cidadãos, em toda parte do mundo.
A representação popular, concebida desde o século XVIII, conferiu às eleições, nas quais os eleitores escolhem entre vários postulantes, os seus representantes em Parlamentos, que passam a ser organismos essenciais das democracias liberais. De lá até nossos dias aperfeiçoamentos foram introduzidos e estes institutos figuram entre os mais necessários e eficientes de todas as democracias existentes no mundo.
Dona Carmen, todavia, considera que a representação popular está superada, mandando às favas todas as teorias que defendem a sua aplicabilidade, desde, como narra a historiografia sobre a matéria, que não foi, e provavelmente não haverá de ser no horizonte descortinado, um substituto à altura para a instituição, sem a qual estaríamos sob as tiranias, tão conhecidas do século passado. Lembra, ministra?
Neste momento vem à tona, a celebre afirmação de Goethe de que “nada é mais terrível do que ver a ignorância em ação”. Na nossa Constituição Cidadã o texto constitucional é bem claro: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. É bem definido que o nosso povo exercerá o poder diretamente, através de propostas populares, de plebiscito, referendum, todos previstos na Constituição.
A constitucionalista já referida, pensou, mal pensado, que o “autogoverno” poderia ser exercido através dos meios tecnológicos disponíveis e, ainda que não conhecesse essas novidades, John Stuart Mill foi previdente ou, se preferir, precavido em face de bobagens futuras, ao dizer, em seu clássico “Da Liberdade Individual e Econômica”: “termos como ‘autogoverno’ e ‘o poder do povo por si mesmo’ não expressavam o verdadeiro estado das coisas. O ‘povo’ que exerce o poder nem sempre é o mesmo povo sobre o qual o poder é exercido; e o dito ‘autogoverno’ não é o governo de cada um por si próprio, mas o cada um por todo o resto. Além disso, a vontade do povo, na prática, significa a vontade da parcela mais numerosa ou mais ativa do povo; da maioria...” Quiça, uma ditadura da maioria!
Mais grave ainda do vesgo pensamento de uma ministra de um tribunal superior, é imaginar que as conquistas da internet vieram para aniquilar a representação popular. Em verdade, elas se estabeleceram para fortalecer tal instituição, acrescentar maior identidade entre o que deseja o cidadão eleitor e seu representante, criticá-lo com veemência de que não dispunha, apresentar-lhe suas reivindicações e outros tantos elementos de real valor a esse vínculo propiciado pelos regimes democráticos.
O que o advento das modernas comunicações propiciaram ao cidadão comum do povo foi o que lhe faltava, como o pão que comia ou o ar que respirava, a divulgação da palavra, essa consciência prática do pensamento, a livre expressão de suas ideias, a oxigenação moral da sociedade civil.
Não é por outra razão, que a autocracia dominante no nosso país não hesita em desmantelar as verdadeiras instituições democráticas, de que se valem as nações civilizadas do mundo, e controlar, até desmontar, a liberdade constante nas redes sócias. Se não me engano, foi Francisco Quevedo que disse: “onde tem pouca justiça é um perigo ter razão.”