Como 23 judeus expulsos de Recife ajudaram a fundar Nova York
Abordo do navio Valk, cerca de 600 judeus deixaram Recife, em Pernambuco, expulsos pelos portugueses

Foto: Reprodução/BBC
A trajetória de 23 judeus, que foram resgatados por uma fragata francesa e levados à Jamaica, então colônia espanhola, e acabaram presos por causa da Inquisição espanhola foi relatada pela BBC News. Na época, os judeus foram libertos graças à intervenção do governo holandês e, por motivos financeiros, parte deles seguiu para um destino mais próximo do que a Europa: a colônia holandesa de Nova Amsterdã, atual Nova York.
Ali formaram a primeira comunidade judaica da América do Norte e contribuíram para o desenvolvimento da cidade. Atualmente, Nova York é a segunda cidade com o maior número de judeus no mundo, atrás apenas de Tel Aviv, em Israel. De acordo com a reportagem, o grupo de judeus queriam voltar à terra natal, a Holanda, onde o culto do judaísmo era permitido devido ao calvinismo. De lá haviam chegado mais de duas décadas antes, quando os holandeses conquistaram parte do Nordeste brasileiro, de olho na produção e comércio do açúcar. Mas uma tempestade desviou-os do caminho e o navio foi saqueado por piratas. Abordo do navio Valk, cerca de 600 judeus deixaram Recife, em Pernambuco, expulsos pelos portugueses.
Imigração judaica
De acordo com a BBC News, a imigração judaica ao Brasil remonta à época do descobrimento, com os chamados "cristãos novos", judeus que foram obrigados a se converter ao cristianismo na Península Ibérica devido à perseguição pela Igreja Católica.
Em fevereiro de 1630 com a ocupação holandesa que os judeus dos Países Baixos, alguns dos quais descendentes dos que haviam fugido da Península Ibérica rumo à Holanda, chegaram ao Brasil, diz à BBC News Brasil a historiadora Daniela Levy, autora do livro De Recife para Manhattan: Os judeus na formação de Nova York (Editora Planeta), que demandou 10 anos de pesquisa.
"Os judeus que vieram ao Brasil eram descendentes dos cristãos novos que se mudaram para a Holanda um século depois da conversão forçada pela Inquisição. Naquele país, eles puderam retornar ao judaísmo, recuperando tradições e reorganizando-se enquanto comunidade", explica Levy.
Muitos desses judeus holandeses integravam a Companhia das Índias Orientais, uma empresa de mercadores fundada em 1602 e cujo objetivo era acabar com o monopólio econômico da Espanha e de Portugal.
No Recife, eles foram abrigados por parentes aqui já estabelecidos, mas constituíram sua própria comunidade, na qual podiam, enfim, professar sua religião em paz, dedicando-se ao comércio, à botânica e à engenharia. Construíram escolas, sinagogas e cemitério, dando sua contribuição ao enriquecimento da vida cultural da região.
As estimativas sobre o número de judeus no período holandês variam muito, entre 350 e 1.450. O número é expressivo considerando que cerca de 10 mil pessoas viviam na região. Ainda de acordo com Levy, a isso não só se deveu ao fato de que a Holanda era calvinista, permitindo a liberdade de de culto, mas também graças a Johan Maurits van Nassau-Siegen, ou Maurício de Nassau, militar que governou a colônia holandesa no Recife de 1637 a 1643.
"A Holanda era um país protestante e abriu suas portas para outras religiões quando se tornou independente da Espanha. Foi então quando os cristãos novos saíram de Portugal e foram para lá. Existiam alguns calvinistas que tinham animosidades contra os judeus, mas, de forma geral, a política holandesa era de tolerância religiosa", disse Levy.
"Maurício de Nassau, um grande humanista, defendia a visão de que o bom convívio de grupos de diferentes religiões seria politicamente mais proveitoso, e também do ponto de vista econômico", acrescentou.
Com o intuito de transformar Recife na "capital das Américas", Nassau investiu em grandes reformas, tornando-a uma cidade cosmopolita. Apesar de benquisto, ele acabou acusado por improbidade administrativa e foi forçado a voltar à Europa em 1644. Após o fim da administração Nassau, a Holanda passou a exigir a liquidação das dívidas dos senhores de engenho inadimplentes, o que levou à Insurreição Pernambucana e que culminaria, mais tarde, com a expulsão dos holandeses do Brasil, em 1654.
Na prática, mesmo depois de terem sido derrotados, os holandeses receberam dos portugueses 63 toneladas de ouro para devolver o Nordeste ao controle lusitano no século 17. A duras penas, os 23 judeus conseguiram sobreviver a partir do comércio, que logo cresceu, atraindo mais judeus para a cidade, que viria a mudar de nome (para Nova York) em 1664. Depois da guerra de independência americana, seus descendentes alcançaram plena cidadania. Um deles, Benjamin Mendes (1745-1817) fundou a Bolsa de Nova York.