Construção e desconstrução de um herói
O editorial desta terça-feira aborda como Tiradentes foi elevado ao posto de herói nacional

Foto: Reprodução/Quadro de Pedro Américo
Dicionários definem herói da seguinte maneira: “uma figura arquetípica que reúne em si os atributos necessários para superar de forma excepcional um determinado problema de dimensão épica.” Arquetípica significa possibilidades herdadas para representar imagens similares, formas instintivas de se imaginar. Já épica é o qualificativo das grandes composições em que o poeta canta uma ação heroica.
Dentro desta construção, o herói então difere-se de indivíduos comuns pela sua capacidade de realizar proezas que exigem a abundância de alguma virtude crucial aos seus objetivos – fé, coragem, vaidade, orgulho, força de vontade, determinação, paciência etc. E assim elevaram Tiradentes a herói nacional, a partir de um heroísmo que resulta em autossacrifício, o martírio.
Tiradentes. O nome verdadeiro é Joaquim José da Silva Xavier. Nasceu na vila de São João Del Rei, no auge da produção aurífera em Minas Gerais, e deveria ter em torno de 45 anos quando aconteceu a Inconfidência Mineira. Diferente do que muito se diz, Tiradentes não era pobre, mesmo que ainda não de muitas posses, nos padrões econômicos da época. Ganhou este nome, Tiradentes, porque quando jovem teve contato com um tio que lhe ensinou sobre o que se chama hoje de odontologia.
Por que alferes? Alferes é era uma patente militar daquela época, ou seja, Tiradentes antes de se envolver com a Inconfidência Mineira era um tropeiro do exército, um cargo baixo, geralmente o mesmo de negros libertos, mas também discute-se na historiografia sobre possível destaque em seu ofício de alferes.
Tiradentes foi o único dos envolvidos com o movimento a ser sentenciado à morte, e por esquartejamento. Por que? Ele era o líder? Ou por que ele era um dos mais pobres dos inconfidentes? Independente da resposta, que ninguém saberá ao certo e isto é um debate ainda sem resposta, sabemos que Tiradentes foi executado e esquartejado. As quatro partes de seu corpo foram expostas em praça pública para servir de exemplo àqueles que desafiassem Portugal. No entanto, a maioria dos participantes da Inconfidência eram donos desta mão de obra escrava, e fala-se que até mesmo Tiradentes era dono de propriedades que herdou dos pais, falecido quando ainda era jovem.
Como o mártir da Inconfidência, que não aconteceu, séculos após a sua morte, foi possível construir um Tiradentes semelhante a Jesus Cristo principalmente porque não há retratos dele feito por alguém que o tenha visto pessoalmente. Todas imagens construídas de Tiradentes são fruto da imaginação, criatividade e apropriação de ideia dos artistas que o retrataram, seja igual a Jesus ou com outras referências, como aquela militar que já vimos.
Neste caso, Tiradentes é simbolizado como mártir da Inconfidência Mineira. A obra de Pedro Américo tem um fim moral, isto é, todos elementos do quadro foram bem pensados para simbolizarem um Tiradentes que morreu para um bem maior, além de aproximar sua aparência com a de Jesus. Mostrar que seu sacrifício é a grandeza de uma causa.
Há porém um erro histórico nesta obra. A sentença de Tiradentes não foi pública, aconteceu no Rio de Janeiro na Casa do Trem, e apenas depois seus pedaços seguiram para Minas Gerais, aonde foi exposto em praça pública.
A imagem de Tiradentes só vira mito no Brasil República, mais de um século depois. O historiador José Murilo traça o caminho que a figura de Tiradentes percorreu para ser construída como herói republicano. Tiradentes não era uma figura muito conhecida pelos republicanos e até hoje se disputa a verdadeira trajetória deste homem e o papel da Inconfidência Mineira na história do Brasil.
Para o historiador José Murilo, o interessante sob esta questão é estudar como e porque Tiradentes virou mito, e não sua origem, pois que existiu. O historiador pesquisou em documentos da época para comprovar que algo diferente aconteceu naquela época em Minas Gerais e alguém morreu enforcado.
Não apenas a figura de Tiradentes, mas também o movimento da Inconfidência Mineira ficou na memória do povo. Porém, era de supor que não era fácil exaltar a Inconfidência durante o período monárquico, afinal, foi um movimento contra o poder real. Tanto que foi uma historiografia estrangeira a primeira a atentar-se à Inconfidência e aproximar Tiradentes a figura de herói, comparado com um revolucionário francês (referencia a Revolução Francesa onde o povo pegou armas e lutou pelas suas condições de vida).
Posteriormente novos paralelos entre Tiradentes e Cristo seriam traçados: um homem que recebeu sereno a sentença do enforcamento. De acordo com algumas correntes historiográficas narram, a memória de Tiradentes é aquela de um homem místico com um áurea de bondade, afastando-se da imagem de rebelde e fora da lei, como a corte portuguesa o classificou.
Também na segunda metade do século XIX houve forte tentativa da Monarquia em apagar de vez a memória de Tiradentes enaltecendo a figura do Imperador. A disputa monarquia x república continuou até mesmo após a proclamação e chegou até no século XX. E no fim, as duas figuras ficaram na memória do povo, o que é possível notar até os dias de hoje, seja em nome de ruas, praças e mesmo no ensino de história.
A construção de Tiradentes enquanto um herói nacional dependia de sua imagem como um herói republicano, desta forma, também simbolizava oposição a monarquia (o antigo regime do Brasil) e apartava-se da imagem de D. Pedro I. Mas Tiradentes não deveria ser visto como um herói republicano radical e não deveria excluir ninguém, então era preciso pensar em melhor elaborar a imagem do Tiradentes herói cívico religioso, retomar as referências cristãs. No final do Império, Tiradentes passa a ser aceito para emblematicamente representar a nação brasileira desde que não excluísse a imagem de D. Pedro I.
Além do forte apelo da tradição cristã do povo, outros fatores ajudaram a consagrar Tiradentes como herói nacional para representar a nova República. A imagem de Tiradentes ganhou força entre a elite republicana através da questão geográfica, uma vez que ele era mineiro e o estado de Minas Gerais inseria-se ativamente na política econômica do café no fim do século XIX enquanto os republicanos trabalhavam na construção de um herói nacional.
Assim podemos constatar que Tiradentes foi eleito herói nacional através de várias leituras, várias simbologias, seja ela cristã, geográfica, cívica ou guerreira, Tiradentes era a figura ideal para a elite republicana conquistar o povo através de um homem simples que lutou por ideais de liberdade.


