Preço do café pode baixar, mas não por causa de Trump; setores de carnes e sucos miram a Ásia
Café moído registrou inflação de 77,88%, enquanto o preço de boi, porco e carneiro subiram 23,63% nos últimos 12 meses

Foto: Marcello Casal Jr/Agência Brasil
Na lista dos principais produtos brasileiros exportados para os Estados Unidos, há um seleto grupo de commodities agropecuárias que vêm registrando um avanço de preços no mercado interno: café, carnes e suco de laranja.
De acordo com o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), nos últimos 12 meses encerrados em junho, na variação medida pelo IPCA, o café moído registrou uma inflação de 77,88%, enquanto o preço das carnes (boi, porco e carneiro) subiu 23,63%. Em suco de frutas, a alta foi menor (7,95%).
A dúvida que fica para o consumidor brasileiro é: se vai ser difícil vender esses produtos nos Estados Unidos a partir de 1º de agosto, por conta da sobretaxa de 50% anunciada pelo governo do presidente Donald Trump ao Brasil, será que os fabricantes vão escoar o excedente para o mercado interno? E isso pode tornar os preços mais baixos para quem paga pelo produto em reais?
Segundo economistas ouvidos pela Folha de S.Paulo, esta seria a lógica no curto prazo: se o comprador estrangeiro falhou, o produtor redireciona o estoque para o mercado interno, onde ele tem mais facilidade de escoar a produção.
Com mais de 211 milhões de habitantes, com uma taxa de desemprego de 6,2% e inflação a 5,35% nos últimos 12 meses, o Brasil é um mercado que importa ser explorado. Com isso, o aumento da oferta poderia puxar os preços para baixo. Mas cada um desses setores da economia tem dinâmicas diferentes, e as contas não são tão simples.
O preço do café, que está nas alturas e já apresentou a maior inflação em toda a história do Plano Real, pode cair nos próximos meses, segundo a Abic (Associação Brasileira da Indústria de Café). Mas não como efeito do tarifaço de Trump.
"A safra do ano que vem é contratada para ser uma safra recorde, o que será suficiente para recompor os estoques nos países produtores e consumidores", diz Pavel Cardoso, presidente da Abic.
"Os brasileiros vão encontrar menores preços nas prateleiras a partir de outubro e novembro, mas não por conta do motivo relacionado aos Estados Unidos", afirma.
De acordo com o executivo, o café subiu de preço nos últimos anos devido a uma conjuntura envolvendo questões climáticas, o que gerou quatro anos seguidos de descasamento entre oferta e demanda global. "A procura pelo produto cresceu, enquanto as safras foram menores do que era esperado", diz. Fora isso, houve a especulação por parte de fundos de investimentos que apenas operam contratos, não a matéria prima, afirma.
Cardoso reforça que o Brasil é o maior produtor de café do mundo e exporta cerca de 65% do que produz. Os Estados Unidos representam 16% das exportações, são os maiores compradores. "Não tem plantação de café nos EUA", diz. Em bloco, porém, a Europa é a maior compradora do café brasileiro, respondendo por cerca de 53% das exportações.
IMPOSTO DO CHÁ EM 1773 NOS EUA CAUSOU REVOLUÇÃO E TROCA DO PRODUTO POR CAFÉ
De acordo com o executivo, a ligação dos americanos com o café remonta a quase 300 anos. Em 16 de dezembro de 1773, no episódio que ficou conhecido como "Boston Tea Party" (Festa do Chá de Boston), colonos americanos invadiram navios britânicos e lançaram ao mar centenas de caixas de chá em protesto contra os impostos sobre o produto.
"Ironicamente, mais uma vez a sobretaxa pode mudar os rumos do consumo americano", diz.
Isso porque, desde o episódio, os EUA passaram a dar preferência ao café e o Brasil se tornou o seu principal fornecedor. "O consumo americano ao ano é de 4,9 kg por habitante per capita", diz. No Brasil, a proporção é maior, da ordem de 6,26 kg per capita. Mas os líderes em consumo individual são os países nórdicos, como Finlândia e Noruega, com médias entre 12 e 13 kg per capita ao ano, diz.
Cardoso reforça ser fundamental acionar a diplomacia dos dois países na tentativa de evitar a sobretaxa. Mas caso ela se torne inevitável, o excedente da produção já tem destino certo: Ásia. "A China tem grandes redes de cafeteria e o mercado asiático tem tração para ocupar o espaço deixado pelos Estados Unidos", diz. O Brasil, por sua vez, já é um mercado maduro: 98% dos lares consomem a bebida, afirma.
O mercado de carnes também não depende dos Estados Unidos, segundo a Abiec (Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carnes) e a ABPA (Associação Brasileira de Proteína Animal). Do total da produção de carne bovina, cerca de 30% é exportada. Em suínos, 25% do volume é vendido fora do país. O mercado externo é muito relevante para aves (65% da produção), mas os americanos não compram frango brasileiro, uma vez que são grandes produtores e concorrem com o país no mercado internacional.
Os Estados Unidos são o destino de 12% das exportações de carne vermelha, bem atrás da China (44%). "O primeiro grande mercado para o Brasil é o próprio país, que consome 70% da produção", diz Roberto Perosa, presidente da Abiec. Segundo ele, o país exporta cortes que o brasileiro não consome com frequência, como partes dianteiras do boi e miúdos.
"Os miúdos vão para a Ásia, onde são usados em ensopados e preparações típicas. Já o dianteiro vai para os Estados Unidos, usado na produção de hambúrgueres", diz. Segundo ele, 68% da carne bovina consumida nos Estados Unidos é em forma de hambúrguer.
"O mercado brasileiro não teria capacidade de absorver todo o volume de dianteiros e miúdos produzidos. Vislumbramos a produção do excedente americano para outros países, reforçando as parcerias existentes", diz. "Os EUA demandam muito do nosso produto, mais de 20% da carne consumida no país é importada do Brasil. Eles serão os maiores prejudicados, porque temos preço, entrega e qualidade."
De acordo com a ABPA, em carne suína, os Estados Unidos estão em 12º lugar entre os compradores estrangeiros. Os americanos são os principais compradores de ovos do Brasil, mas o volume exportado é muito restrito: menos de 1% da produção nacional vai para fora do país.
"Por não responder por um consumo relevante, e haver outros mercados compradores, uma eventual suspensão de exportações de carne para os EUA dificilmente vai representar aumento da oferta no mercado local, a ponto de mexer nos preços", diz Ricardo Santin, presidente da ABPA. Ainda assim, o executivo defende que representantes de ambos os países levem as negociações a sério. "Economia não combina com ideologia."
SUCO DE LARANJA BRASILEIRO DEPENDE DO CONSUMO AMERICANO
Já o setor de sucos cítricos, especialmente o de laranja, tem motivos para se preocupar com o tarifaço. Cerca de 95% da produção é exportada. Os Estados Unidos são o maior mercado individual, respondendo por 42% das exportações do Brasil. A Europa é o destino de 52% das exportações, com destaque para Alemanha, França e Reino Unido.
"Se a sobretaxa for adotada, o imposto vai responder por 70% do valor da tonelada: serão US$ 2.500 de US$ 3.500 negociados. Ou seja, vão sobrar US$ 1.000 para remunerar toda a cadeia de produção, o que torna inviável a venda para os EUA", diz Ibiapaba Netto, diretor-executivo da CitrusBR (Associação Nacional dos Exportadores de Sucos Cítricos).
Segundo ele, a Europa não tem condições de absorver todo o volume exportado para os EUA. Embora mercados asiáticos venham crescendo, em especial China e Coreia do Sul, não são suficientes para comprar o excedente americano. "A Índia tem grande potencial, por conta da classe média gigantesca, mas as negociações levam tempo", diz.
Não há possibilidade de o Brasil arcar com o excedente americano. "A indústria cítrica foi organizada para exportação e demanda capital intensivo ", diz. "O produto viaja a granel, de navio-tanque, o envase é feito localmente. Não dá para reverter a produção ao mercado interno, pois isso demandaria um trabalho de envase, marketing, distribuição. E como um país tropical, a população está acostumada a consumir sucos naturais", afirma.
Para André Braz, economista do FGV Ibre (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas), a chacoalhada promovida pelo tarifaço de Trump é uma oportunidade de o Brasil olhar para frente e estabelecer novas parcerias comerciais o mais rápido possível. "O mundo está disposto a mostrar ao presidente americano que os Estados Unidos não são uma ilha e os países precisam negociar, pois têm necessidades complementares", diz.
O economista André Perfeito, sócio da consultoria APCE, concorda. "O mundo vai precisar achar uma saída para o Trump", diz. "O encontro dos Brics [grupo formado por Brasil, China, Índia e Rússia, entre outros países] o deixou irritado, porque ele teme que o dólar perca relevância no cenário internacional", diz. Mas menos vendas aos Estados Unidos significam menos dólares circulando no Brasil, o que pode elevar o câmbio.
Maria Andréia Parente Lameiras, economista do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) também teme esse efeito colateral. "A nossa moeda fica mais volátil e o dólar sobe", diz. "Isso traz complicações para a economia como um todo". Além disso, afirma, se uma empresa não consegue redirecionar sua produção a outro mercado, ou escoar internamente, vai ajustar a sua operação, cortando pessoal para reduzir custos.
Para Ladislau Dowbor, professor titular de Economia e Administração na pós-graduação da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo), o tarifaço de Trump tem impacto limitado, uma vez que os EUA são destino de apenas 12% das exportações brasileiras. "Podemos sim ampliar a orientação dos produtos alimentícios ao mercado interno, algo estruturalmente positivo, o que poderia baixar preços e sobretudo acabar com o absurdo da fome e da insegurança alimentar em um país que só de grãos produz mais de quatro quilos por pessoa ao dia", diz o economista, ex-consultor de diversas agências das Nações Unidas.