Protagonismo feminino no 2 de Julho: as heroínas anônimas na luta pela independência da Bahia
Neste 2 de Julho, o Farol da Bahia resgata a memória das mulheres anônimas que, ao lado de heroínas consagradas, ajudaram a escrever a história do Brasil

Foto: Reprodução/Mov. Viva Ilha
No dia 2 de Julho, a história da Bahia ganha as ruas, praças e a memória de um povo que há mais de dois séculos resiste e celebra a própria liberdade. Entre caboclos, bandeiras e estandartes que desfilam da Lapinha ao Campo Grande, há uma história que por muito tempo permaneceu guardada nas casas, nos terreiros e nos becos das cidades baianas: a das mulheres anônimas que lutaram pela independência.
Maria Quitéria, Maria Felipa, Joana Angélica e Catarina Paraguaçu ocupam lugar de destaque na narrativa da independência baiana. Pioneiras em diferentes territórios e estratégias, suas trajetórias simbolizam a coragem e a ruptura de papéis femininos em uma sociedade marcada pela hierarquia e pelo domínio masculino. “Essas quatro mulheres tiveram muita importância, como tantas outras que a gente não conhece os nomes”, ressaltou a historiadora e professora Marianna Freitas, em entrevista ao Farol da Bahia.
Maria Felipa, Maria Quitéria, Joana Angélica e a figura da Cabocla, da esquerda para a direita. Foto: Filomena Modesto Orge/Arquivo Público do Estado da Bahia | Reprodução | Domínio Público / Acervo do Museu Paulista da USP | Bruno Concha/Secom
Cada uma das heroínas consagradas representa um perfil e uma forma de resistência. Maria Quitéria, que vestiu-se de homem para lutar; Maria Felipa, marisqueira da Ilha de Itaparica, que organizou mulheres para enfrentar tropas portuguesas; Joana Angélica, abadessa assassinada ao tentar impedir a invasão de seu convento; e Catarina Paraguaçu, mulher indígena, símbolo do encontro violento entre colonização e território ancestral. “Elas são plurais e protagonistas à sua maneira. E junto a elas, milhares de mulheres comuns ousaram um destino diferente”, completa a historiadora.
Foi no Recôncavo Baiano que essa resistência silenciosa se fez mais forte. Em cidades como Saubara, Maragogipe, Santo Amaro, Cachoeira, Nazaré das Farinhas e São Francisco do Conde, as mulheres empunharam armas, transportaram munição, espionaram, cozinharam e cuidaram dos seus. Em Saubara, por exemplo, uma antiga estratégia de guerra virou tradição.
Ao longo das lutas de 1823, mulheres se vestiram com lençóis brancos, tabuleiros sobre a cabeça, escondendo armas e alimentos. Gritavam pelas ruas de Saubara, chacoalhavam objetos para produzir sons fantasmagóricos e espantar soldados portugueses. “É uma estratégia coletiva, uma estratégia de guerra”, define Marianna. A tática permaneceu na cultura local como a Festa das Caretas de Mingau, tradição passada de mãe para filha, celebrada até hoje na véspera do 2 de Julho.
Foto: João Pereira/Divulgação
A invisibilização dessas mulheres, segundo a historiadora, faz parte de um projeto historiográfico antigo. “A história foi durante séculos protagonizada por homens, figuras que nem sempre se preocupavam em colocar o lado real dos acontecimentos. Isso deixou de lado a grande massa populacional: as nossas tataravós, nossos tataravôs”, analisa. Com o tempo, essa narrativa vem sendo questionada por novas correntes historiográficas, voltadas à memória social e cultural.
Para Marianna, esse resgate recente tem sido importante não só para corrigir os registros oficiais, mas para aproximar a população baiana de suas raízes. “Nunca se viu tantas mulheres orgulhosas por estarem sendo representadas pelas nossas ancestrais. E a ancestralidade aqui não é só genealógica, é cultural, social. Joana D’Arc está muito longe. Vamos falar de Maria Quitéria, Felipa, Joana Angélica e tantas outras mais próximas. Esse sentimento de proximidade também contribui para o resgate”, explica.
A memória coletiva se mantém viva não apenas nos livros, mas nas ruas e celebrações populares. Marianna explica que os blocos, fanfarras e cortejos são também atos de resistência. “Todos esses movimentos colaboram porque levam a história para os meninos, meninas, crianças e idosos. É uma aula de história em praça pública. Quando a população protagoniza e lidera esses movimentos culturais, isso é fantástico. É um ativismo cultural e histórico que resiste desde 1823. Eu vejo a importância e abundância de pessoas que não conheciam sua própria história e passaram a fazer parte dela”, conclui Marianna.
Em meio ao som das fanfarras e às vozes nas ruas do povo, segue marchando a força das heroínas anônimas da independência baiana, mulheres comuns que ousaram lutar para que a liberdade não fosse privilégio de poucos.
2 de Julho
Em 1823, quase um ano após a proclamação da Independência em 7 de Setembro, a Bahia ainda permanecia sob domínio das tropas portuguesas. Foi nas ruas, vilas e cidades baianas que se travaram as batalhas decisivas para consolidar a separação do Brasil em relação a Portugal.
No dia 2 de Julho daquele ano, as forças brasileiras venceram os últimos focos de resistência portuguesa e expulsaram o exército inimigo de Salvador, marcando a verdadeira independência do território baiano e assegurando a integridade do Brasil recém-independente.
Desde então, a data se tornou símbolo da luta popular, com forte participação feminina e protagonismo das camadas populares e interioranas.