Foto: Reprodução Redes Sociais
Nos últimos dias, um casal de influenciadores digitais causou furor nas redes sociais ao divulgar um vídeo no qual elenca, de forma pretensiosa e ao seu critério, “requisitos” para se viver em Santa Catarina. Segundo eles, trata-se de um estado conservador, incompatível com pessoas que defendem pautas como a “agenda woke”, a “ideologia de gênero” e o que a mulher chamou de “assistencialismo estatal”.
A postagem foi, de logo, rebatida com indignação por grande parte dos internautas (nem sei se ainda usa esta denominação?!), sobretudo pelo que veio à tona, logo em seguida: a mulher do casal havia recorrido ao auxílio emergencial concedido pelo governo durante a pandemia. Ou seja, se beneficiou exatamente daquilo que agora chama, com desprezo, de “assistencialismo estatal”.
Confrontada com a hipocrisia de seu discurso, a senhora tentou se justificar: disse que, na época, enfrentava dificuldades financeiras, que seu negócio havia parado, recebeu calotes, já que trabalhava com eventos – note-se que no discurso disse que o estado era de pessoas honestas, probas... e por aí. E mais: que precisava sustentar a si mesma e que o auxílio foi uma forma de não afundar por completo. Curiosamente, essas são justamente as condições vividas por milhões de brasileiros que hoje recebem benefícios como o Bolsa Família — e que são, não raro, alvo do mesmo preconceito propagado por falas como a dela.
Essa contradição não é apenas irônica, perversa: é reveladora. Expõe a seletividade de certos discursos que demonizam políticas públicas quando são voltadas aos outros, mas se silenciam — ou se justificam — quando são beneficiados diretamente por elas. É o velho discurso do "mérito próprio" para si e "dependência do Estado" para o outro.
O caso do casal catarinense é emblemático de um tipo de comportamento muito comum nas redes sociais: a criação de uma identidade digital baseada em supostos valores de esforço pessoal, independência financeira e "moralidade conservadora", que desconsidera a complexidade das trajetórias humanas. No fundo, trata-se de um julgamento raso, construído a partir de recortes ideológicos e que ignora a empatia, a memória e, sobretudo, a coerência.
O Estado brasileiro — como qualquer Estado democrático — tem entre suas funções a de garantir o mínimo de dignidade aos seus cidadãos. Políticas de assistência social, como o auxílio emergencial e o Bolsa Família, não são “esmolas”, mas instrumentos de justiça social, criados para proteger os mais vulneráveis em tempos de crise ou diante de desigualdades estruturais.
Talvez o episódio sirva como alerta para um fenômeno mais amplo: a facilidade com que, na era digital, as pessoas se tornam juízes da vida alheia, enquanto escondem — ou esquecem — a própria biografia. Não é apenas hipocrisia, em verdade, é um sintoma de uma sociedade adoecida pela vaidade, pela polarização e pela necessidade de parecer superior, mesmo quando isso custa a verdade.
Antes de apontar o dedo, talvez valha lembrar: ninguém está imune à necessidade, e o que hoje parece dispensável, amanhã poderá ser essencial. Nesse país tão desigual, empatia não deveria ser só uma virtude — deveria ser regra.