Governo Lula engaveta política para população trans após apresentá-la duas vezes
Prometida para março de 2024, medida que amplia acesso a cirurgias e hormonioterapia no SUS está travada por temor de reação conservadora e impasse jurídico

Foto: Xiangkun ZHU/Unsplash
O governo Lula (PT) arrasta há mais de um ano a publicação de uma nova política para ampliar o financiamento e a oferta de serviços de saúde à população trans.
O Ministério da Saúde já apresentou a iniciativa duas vezes para gestores do SUS (Sistema Único de Saúde) e representantes do movimento LGBTQIA+, e chegou a prometer que efetivaria as mudanças em março de 2024. Mas, hoje, a pasta diz que não há data para a publicação das portarias que oficializariam a mudança.
A nova política reduziria a idade mínima para realização de procedimentos cirúrgicos em hospitais da rede pública, como a mastectomia (procedimento para remoção da mama), cuja idade mínima cairia de 21 para 18 anos. Também estava previsto a permissão do uso de hormônios a partir dos 16 anos, tratamento hoje restrito a maiores de idade no SUS.
Integrantes do ministério dizem, sob reserva, que a publicação travou devido ao receio do governo Lula de se tornar alvo de parlamentares da direita, como ocorreu quando a Saúde teve de anular os efeitos de uma nota técnica sobre procedimentos de aborto legal.
Procurado, o Ministério da Saúde disse, em nota, que "o SUS oferece atendimento integral e gratuito à população trans, incluindo hormonioterapia, acompanhamento multiprofissional e cirurgias. Atualmente, são 103 serviços habilitados para este atendimento", mencionando portaria de 2013.
Em entrevista à Folha de S.Paulo, o ministro Alexandre Padilha (PT), não confirmou quando deve ser oficializada a nova política, chamada de Paes Pop Trans (Programa de Atenção Especializada à Saúde da População Trans).
Ele disse que há uma "pendência" jurídica sobre o tema, ao se referir a questionamentos levados ao STF (Supremo Tribunal Federal) sobre uma resolução do CFM (Conselho Federal de Medicina) que aumenta a idade mínima para a realização do processo transexualizador.
"Esse fato cria uma situação que traz obstáculo para qualquer política mais integral sobre esse tema", disse Padilha.
O texto do conselho, porém, não interfere em outras medidas previstas, como a expansão do financiamento a serviços previstos no Paes Pop Trans. O plano era investir R$ 68 milhões em 2025 e elevar gradualmente esse orçamento para R$ 152 milhões até 2028.
A verba custearia serviços de saúde bucal, compras de equipamentos para instalar ambulatórios e centros cirúrgicos especializados, além de etapas do processo transexualizador, como operações de redesignação sexual.
Em relatório sobre a nova política, apresentado no começo de 2024, o ministério disse que o orçamento previsto para o processo transexualizador no SUS no ano anterior foi inferior a R$ 1 milhão.
O ministério ainda deu um passo atrás na discussão após o CFM aprovar uma resolução que proíbe o bloqueio puberal para mudança de gênero e aumenta de 18 para 21 anos o limite para cirurgias que podem causar infertilidade, como as que removem útero e ovários. A resolução está sob questionamentos no Supremo.
A presidente da Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), Bruna Benevides, afirma que "não há justificativa aceitável" para barrar a publicação de uma portaria pronta há mais de um ano. "A ausência desse instrumento normativo, além de denunciar a falta de compromisso do governo, fragiliza a política pública, deixa profissionais e serviços sem diretrizes claras, e, sobretudo, coloca a população trans em situação de maior vulnerabilidade diante de uma ofensiva institucional e ideológica antitrans, que tem se intensificado", diz Benevides.
Ela também afirma que a demora ultrapassa a omissão e demonstra impactos concretos, como interrupção de serviços, judicialização e insegurança nos atendimentos. "E, principalmente, o agravamento das barreiras de acesso à saúde para travestis e pessoas trans, especialmente as mais jovens".
"Publicar a portaria é, neste momento, uma resposta política e institucional necessária à altura da violência simbólica e concreta que estamos enfrentando", completa a presidente Antra.
A nova política foi desenhada por grupo de trabalho montado em 2023. Em fevereiro do ano seguinte, o ministério levou a proposta aos conselhos de secretários de estados e municípios, que aprovaram a nova política.
Após apresentar a política, o ministério recebeu questionamentos de secretarias de saúde sobre a oferta dos serviços. Ainda em fevereiro do ano passado, a pasta disse para o governo de Mato Grosso que havia previsão de publicar o Paes Pop Trans no mês seguinte, segundo documento obtido pela Folha.
Em dezembro de 2024, o ministério fez nova apresentação da mesma política, durante evento em alusão ao Dia Internacional dos Direitos Humanos.
O ministério ainda apontou, segundo processos obtidos pela Lei de Acesso à Informação, diferentes estimativas sobre a publicação da medida. Em fevereiro, por exemplo, a Saúde disse que a medida "encontra-se em ajustes finais necessários para a sua publicação".
Já em maio de 2025, ao responder a questionamento da deputada Duda Salabert (PDT-MG), o ministério disse que o texto que regulamenta o Paes Pop Trans estava "sob análise interna" e que a a tramitação "requer ampla interlocução intersetorial e transversal". A pasta comandada por Padilha afirmou à parlamentar que "não há previsão para sua publicação".
A deputada Salabert disse à Folha que tem cobrado do governo a publicação da política. "Em 2024, quando o programa foi lançado, nos alegramos muito com essa vitória, mas até agora não veio o mais importante: a publicação do decreto que dará início de fato à execução do Paes Pop Trans", diz. Para ela, o programa é uma essencial para garantir cuidados de saúde "adequados e dignos à população trans no Brasil".
"Como um grupo de pessoas historicamente vulnerabilizadas, essa política pública é também uma ação de equidade importante para que os serviços de saúde sejam prestados da melhor maneira, sejam em grandes ou pequenas cidades, sob a visão do SUS", afirmou a deputada.