'Já tive aluno que não sabia escrever o próprio nome', diz professora do Ensino Médio sobre baixo índice de alfabetização na Bahia
Estado registrou o pior índice de alfabetização na idade certa em 2024, segundo dados do MEC

Foto: Bruno Concha/PMS
Com o pior índice de alfabetização na idade certa em 2024, a Bahia mostra como a alfabetização falha desde os primeiros anos e afeta toda a vida escolar. Professores da rede estadual relatam alunos que chegam ao Ensino Médio sem saber ler, escrever, interpretar texto ou realizar cálculos básicos, o que compromete o desempenho no Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) e, consequentemente, amplia as dificuldades e desigualdades no acesso ao Ensino Superior.
De acordo com dados divulgados pelo Ministério da Educação (MEC), apenas 36% das crianças baianas estão alfabetizadas até os sete anos de idade. Salvador, Feira de Santana e Vitória da Conquista, três dos maiores municípios do estado, alfabetizaram menos da metade das crianças no ano passado.
Segundo os dados do MEC, Salvador alfabetizou apenas 36,75% das crianças e ocupa a 182ª posição entre os 417 municípios da Bahia. Entre as capitais brasileiras, é a que apresenta o pior desempenho. Em Feira de Santana, o índice foi ainda mais baixo: apenas 33,19% das crianças foram alfabetizadas e ocupa a 230ª colocação no ranking estadual. Já Vitória da Conquista com 42,75%, aparece na 107ª posição.
O resultado disso, conforme os educadores ouvidos pelo Farol da Bahia, é visível nas salas de aula do Ensino Médio.
“Já tive alunos que não sabiam nem escrever o próprio nome. Por exemplo, o estudante escrevia ‘Danieu’ em vez de ‘Daniel’”, conta a professora de Língua Portuguesa, Vera Regina de Oliveira, que leciona para turmas do segundo e terceiro ano do Ensino Médio. “Eles têm enorme dificuldade para interpretar textos, não têm o domínio gramatical e também não sabem o que é um parágrafo.”
A falta de alfabetização na idade certa gera atrasos que se arrastam por toda a trajetória escolar até a juventude. No Brasil, os municípios devem garantir que o aluno tenha o domínio da leitura, escrita e cálculo básico até o final do 2º ano do Ensino Fundamental. Do 5º ao 9º ano, a responsabilidade passa a ser compartilhada entre município e estado. Já no Ensino Médio, a educação fica por conta do estado.
“A defasagem impacta muito no Enem, principalmente na interpretação e compreensão das questões, que são mais de raciocínio lógico. É aí que a gente percebe a falta da leitura, principalmente na redação, pois só escreve bem quem lê muito. A ausência de um trabalho interdisciplinar constante para incentivar o hábito da leitura nas escolas faz muita falta”, acrescentou.
Além do prejuízo pedagógico, os efeitos emocionais também são significativos. A professora relata que muitos estudantes se sentem desmotivados e desenvolvem baixa autoestima por perceberem que são incapazes de acompanhar o conteúdo. “A falta da prática de leitura e da escrita dificulta a compreensão e a interpretação, essenciais para o bom desempenho do aluno. Surge aí uma grande barreira desmotivadora, interferindo inclusive na autoestima do aluno, que se acha incapaz de avançar”, disse.
Para Vera, a solução precisa começar na base, com acompanhamento individualizado para cada aluno. “É necessário um atendimento individual para o aluno com essas dificuldades de aprendizagem, incentivo à autoestima, valorizando o aprendizado, e conhecimento prévio da realidade do estudante”, pontuou.
Questionada sobre como os docentes do Ensino Médio lidam com os estudantes em defasagem, a professora Vera Regina afirmou, de forma direta, que "não lida" e apontou que a solução seria reduzir a quantidade de alunos por sala de aula. “A escola não lida com isso. Para melhorar essa defasagem, seria necessário diminuir o número de alunos por sala, pois é impossível trabalhar atendendo individualmente cada um, com turmas heterogêneas de 40 alunos, cada um com problemas diversos. Sem condições de incentivar a leitura e a produção textual de cada aluno, não tem como reverter esse quadro.”
Desafios da alfabetização no Ensino Fundamental
A pedagoga e professora licenciada da rede municipal de Salvador, Ciclea Oliveira, também destaca que o processo de alfabetização enfrenta desafios que vão além da escola. “São muitos os desafios, a começar pela desigualdade socioeconômica das famílias. Sabemos que as crianças precisam de um ambiente alfabetizador, com estímulo à leitura e à escrita. Entretanto, os altos índices de pobreza e vulnerabilidade financeira das famílias impactam o acesso das crianças a esse ambiente”, disse em entrevista ao Farol da Bahia.
Ela critica ainda a falta de acompanhamento especializado nas escolas municipais, que agrava o problema de alunos com dificuldades cognitivas. “Também tem as dificuldades cognitivas, e a falta de acompanhamento com profissionais especializados, como psicopedagogos, psicólogos e principalmente médicos neuropediatras. Essas intervenções são necessárias para ajudar as crianças com dificuldades de aprendizagem”, explicou.
Outro fator que, segundo Ciclea, prejudica o aprendizado é o ambiente físico das escolas, que não oferecem boa estrutura para os alunos, a exemplo da falta de climatização. “A inadequação dos espaços, desde a estrutura ao mobiliário, interfere, porque as salas não são climatizadas. Aqui na Bahia, por exemplo, não temos salas com climatização adequada, o que interfere diretamente, pois uma sala de aula com temperatura de 35°C deixa as crianças agitadas, inquietas e desconcentradas, o que impacta negativamente. Ambientes físicos precários limitam atividades de leitura, escrita e círculo de histórias”, afirmou a educadora infantil.
Questionada se o tempo e a metodologia atualmente adotados pelos educadores da rede municipal são suficientes para garantir a alfabetização, a professora informou que o processo só será eficaz se, ao sair da escola, o aluno também encontrar um ambiente alfabetizador em casa. “[...] se ao voltar para casa, a criança deixa de ter acesso a esse ambiente, faz-se necessário ampliar a permanência do aluno na escola para o tempo integral, por exemplo”, sugeriu.
Ciclea também ressalta que o suporte da rede municipal de Salvador ainda é insuficiente para enfrentar a questão da defasagem. “Esse suporte ainda é ineficiente, pois crianças com dificuldades precisam de uma equipe multifuncional e apenas a intervenção do professor em sala não é suficiente. Em muitos casos, o aluno necessita de acompanhamento especializado, mas a rede pública não tem um protocolo.”
Prefeitura de Salvador contesta dados do MEC
Conforme nota enviada ao Farol da Bahia, a Prefeitura de Salvador contestou os números do MEC e afirmou que os dados foram marcados por “falta de transparência”. De acordo com o município, a capital baiana alfabetizou 59% das crianças em 2024, e não 36,75%, como divulgado pelo ministério do governo federal.
A gestão municipal afirmou que os dados “revelaram-se marcados por falta de transparência, inconsistências metodológicas e formas de aplicação distintas entre os estados. Os resultados deveriam representar um dos avanços mais relevantes na agenda de evidências para a educação — por meio da implantação de uma avaliação nacional censitária da aprendizagem dos estudantes do ciclo de alfabetização.”
Segundo a prefeitura, por meio da Secretaria Municipal da Educação, o Programa Salvador Avalia (Prosa), desenvolvido em parceria com o CAEd (Centro de Políticas Públicas e Avaliação da Educação), apontou que 59% das crianças da rede atingiram o nível esperado de alfabetização em 2024. Outro levantamento, feito com base na Avaliação Nacional da Fluência, apontou 56,2% de fluência leitora entre os estudantes.
Leia a nota na íntegra
A Prefeitura de Salvador informa que a educação municipal vem recebendo investimentos históricos nos últimos anos para recuperar o déficit de aprendizado provocado pela pandemia. Em 2024, por exemplo, a rede municipal de ensino teve o maior orçamento da sua história, com um volume de recursos de R$ 2,8 bilhões.
Entre os avanços, Salvador conta com dezenas de novas escolas construídas em alto padrão. Foram criados o Centro de Formação Emília Ferreiro, com cursos gratuitos de formação continuada para toda a rede, e o Centro de Acolhimento ao Educador Tereza Cristina Santos, com 50 psicólogos para cuidar da saúde mental dos professores e de outros profissionais do ensino.
A Prefeitura também criou o Programa Dinheiro Direto na Escola Soteropolitana (PDDES), que liberou R$ 15 milhões diretamente para as mais de 400 unidades da rede municipal de educação, e ampliou a parceria com as escolas comunitárias, que agora recebem uma 13ª parcela de repasse do município.
Em relação aos resultados recentemente divulgados pelo Ministério da Educação (MEC), referentes ao Indicador Criança Alfabetizada, os dados revelaram-se marcados por falta de transparência, inconsistências metodológicas e formas de aplicação distintas entre os estados. Os resultados deveriam representar um dos avanços mais relevantes na agenda de evidências para a educação — por meio da implantação de uma avaliação nacional censitária da aprendizagem dos estudantes do ciclo de alfabetização.
Grande parte das redes estaduais contratou o CAEd (Centro de Políticas Públicas e Avaliação da Educação) para a realização das avaliações que compuseram o indicador. No entanto, algumas redes, como o Estado da Bahia, optaram por contratar a Fundação Getúlio Vargas (FGV), cujos processos foram marcados por atrasos no cronograma, sucessivas remarcações e diversas intercorrências durante a aplicação.
É importante destacar que a Rede Municipal de Salvador possui uma avaliação autônoma, o Programa Salvador Avalia (Prosa), implantado há mais de 10 anos, conduzido pelo CAEd e utilizando a mesma matriz de referência da avaliação estadual. Essa avaliação municipal apontou que 59% dos alunos da rede estão em níveis adequados de alfabetização. Do mesmo modo, os resultados da Avaliação de Fluência Leitora do Compromisso Nacional Criança Alfabetizada (CNCA/MEC) reforçam o desempenho positivo da capital baiana, indicando que 56,2% dos estudantes de Salvador encontram-se com fluência leitora no nível esperado para a etapa de escolarização.
O mesmo ocorreu em 2023, quando o CAEd foi contratado para a realização tanto do Prosa, em Salvador, quanto da avaliação do Sistema de Avaliação Baiano da Educação, do Estado. Os resultados foram de 49% em ambas as avaliações.
Nesse contexto, o MEC consolidou em um único indicador nacional dados oriundos de avaliações estaduais com matrizes, metodologias e cronogramas distintos, conduzidas por instituições diferentes. Essa decisão desconsidera que instrumentos avaliativos distintos produzem resultados distintos, tornando inadequada qualquer tentativa de comparabilidade direta entre as redes. Ao tratar como equivalentes dados que não são homogêneos em sua origem e aplicação, compromete-se a confiabilidade dos resultados apresentados e a credibilidade de uma política pública que deveria se pautar por evidências consistentes e critérios técnicos uniformes.